Vamos falar sobre a origem do dizer e o silêncio que pensa
Já
reparou que, às vezes, ficamos em silêncio, mas estamos cheios de ideias? Uma
conversa pode estar parada por fora, mas por dentro mil pensamentos correm. Não
estamos sempre dizendo tudo o que passa. Na verdade, quase nunca dizemos. O que
chamamos de fala é só a ponta do iceberg do que se passa na mente.
E
se for isso mesmo? Se a fala vier depois do pensamento — como uma
tentativa de tradução imperfeita do que já se formou antes? Nesse ensaio, a
proposta é considerar o contrário do que se costuma afirmar em certos círculos
neurolinguísticos contemporâneos: não pensamos porque falamos, mas falamos
porque pensamos.
O
pensamento silencioso
Muitas
de nossas decisões mais profundas são tomadas sem palavras. Você acorda e sabe
que está triste — antes mesmo de conseguir explicar por quê. Há uma camada
pré-verbal da consciência, cheia de imagens, sensações, intuições. A linguagem,
nesse cenário, não é a origem do pensamento, mas um instrumento para
compartilhá-lo com o outro (e, às vezes, consigo mesmo).
Descartes,
no famoso penso, logo existo, não disse falo, logo penso. O
pensamento é a base da subjetividade. É anterior à fala, mais amplo e mais
sutil. O filósofo Henri Bergson defendia que a consciência excede a linguagem —
que pensar é como nadar em um mar interno, enquanto falar é escolher uma
garrafinha para conter o oceano.
Linguagem
como casca do pensamento
Quantas
vezes já sentimos algo que não conseguimos dizer? Ou percebemos que, ao tentar
explicar uma ideia, ela se esvazia? Isso revela que a linguagem é um
instrumento limitado frente à riqueza do pensamento. Falamos, sim, mas porque
algo já foi fermentado antes. O pensamento é o forno; a fala, o pão assado.
O
psicólogo suíço Jean Piaget argumentava que a linguagem é uma consequência do
desenvolvimento cognitivo, e não sua causa. Para ele, a criança pensa antes de
falar — e vai aprendendo a colocar em palavras o que já está se formando como
raciocínio interno.
Quando
a fala atrapalha
Num
mundo ruidoso, talvez falar demais atrapalhe o pensamento. Distrações verbais,
conversas vazias, impulsos de dizer antes de refletir — tudo isso pode
desfigurar a verdadeira linha do pensamento. Um tuíte mal pensado, uma resposta
impensada: palavras saem, mas não vieram do pensar, vieram da pressa.
Se
fosse verdade que a fala cria o pensamento, todo mundo que fala muito pensaria
melhor. Mas não é o que se vê. Pensar exige silêncio. A fala boa vem depois.
Como o escritor que reescreve mil vezes antes de publicar. Como o sábio que
ouve mais do que fala.
Pensar
é mais que dizer
A
mente humana é capaz de pensar com imagens, sons, metáforas internas,
simulações motoras. Quando antecipamos um futuro possível, quando lembramos de
um cheiro da infância, ou quando visualizamos um projeto de vida — nada disso
precisa, necessariamente, da linguagem articulada.
A
neurociência apoia essa pluralidade de formas de pensar. Antes da ativação das
áreas verbais, há estímulos em regiões ligadas à emoção (amígdala), ao
planejamento (córtex pré-frontal), à imaginação (hipocampo). Ou seja, o
pensamento vem primeiro. A linguagem é um filtro — útil, poderoso, mas um
filtro.
Fala
é ponte, não semente
No
fim das contas, falar porque se pensa é reconhecer que a fala não é a fonte da
consciência, mas seu veículo. Pensar é existir num espaço íntimo, onde a
palavra é convidada, não dona da casa. Só falamos porque temos algo a dizer. E
esse algo nasce antes da fala.
Filosoficamente,
talvez a fala seja apenas o momento em que o pensamento se arrisca no mundo.
Nem todo pensamento vira palavra — e talvez ainda bem. Porque o silêncio também
pensa. E, às vezes, é nele que se encontram as ideias mais verdadeiras.