Pesquisar este blog

Mostrando postagens com marcador palavras. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador palavras. Mostrar todas as postagens

sábado, 28 de junho de 2025

Silêncio Verdadeiro

Estava num daqueles momentos em que tudo parece parar — uma reunião longa, onde ninguém ousava mais falar, ou talvez uma conversa entre amigos que, de repente, esgotou as palavras. E foi ali, nesse vazio de vozes, que percebi: o silêncio é uma linguagem também. Mas qual linguagem? E o que ela diz, quando ninguém está dizendo nada?

Essa sensação me levou de volta a dois filósofos que, curiosamente, trataram da linguagem em extremos opostos do pensamento: Ludwig Wittgenstein e Martin Heidegger. Um buscava a clareza como um jardineiro paciente que poda os galhos tortos da fala. O outro cavava a terra com as mãos nuas, atrás de uma raiz mais funda — o ser, que fala antes da fala. No centro de ambos, lá estava ele: o silêncio, como uma espécie de verdade que escapa por entre as palavras.

I. O silêncio como fronteira da linguagem

Wittgenstein, no final do Tractatus Logico-Philosophicus, diz: “Do que não se pode falar, deve-se calar.” É uma das frases mais citadas da filosofia moderna. Mas o que significa esse calar? Não é uma desistência — é um reconhecimento. Há limites para o que podemos dizer com sentido. O silêncio, nesse caso, marca a borda do mundo, onde as proposições lógicas já não funcionam.

Heidegger, por outro lado, não vê o silêncio como uma falha da linguagem, mas como seu habitat natural. Em Ser e Tempo, ele sugere que o silêncio não é o oposto do discurso, mas uma forma de escuta mais profunda. Quem silencia verdadeiramente está mais atento ao ser do que aquele que fala sem parar. É um silêncio carregado de escuta, de espera, de abertura.

Assim, para Wittgenstein, o silêncio é um freio; para Heidegger, é uma fonte.

II. Linguagem como morada e como ferramenta

Wittgenstein percebe que falamos em jogos. Os "jogos de linguagem" são atividades humanas — pedir, mandar, agradecer, contar piadas. A linguagem não tem essência fora desses usos. O problema não está no que dizemos, mas no como. Quando usamos a palavra “verdade”, por exemplo, em que jogo estamos? Dizer “é verdade que vai chover” não é o mesmo que “é verdade que ela me ama”. O jogo muda, o critério de verdade também.

Heidegger vê a linguagem como “a casa do ser”. Não jogamos com ela: moramos nela. E o que mora nela não é apenas o que se diz, mas o que se revela. A linguagem, então, é revelação — aletheia, desvelamento. A verdade não é correspondência, mas desocultação.

Wittgenstein quer desfazer os mal-entendidos da linguagem para dissolver os pseudo-problemas filosóficos. Heidegger quer mergulhar na linguagem para escutar o chamado do ser. Em Wittgenstein, a verdade é questão de uso bem feito; em Heidegger, é questão de abertura ao que se mostra.

III. A verdade como silêncio ativo

E então, quando nos calamos diante de algo — diante da beleza de um pôr do sol, do mistério de uma perda, ou mesmo da complexidade de um dilema moral — não estamos fugindo da verdade. Estamos, talvez, deixando que ela se manifeste sem a violência da explicação.

O silêncio, nesses momentos, não é ausência. É presença intensa. É o momento em que não ousamos dizer, mas sentimos que algo é verdadeiro. Verdade que não cabe numa proposição, nem num jogo de linguagem, mas que também não se perde na névoa do ser. É uma verdade vivida, não dita.

Talvez seja esse o ponto de contato entre os dois filósofos. Heidegger abre espaço para o ser falar por si. Wittgenstein mostra que, quando as palavras se esgotam, não é o fim do sentido — é o início de outra forma de compreensão.

Volto ao meu silêncio, agora com mais cuidado. Penso em como ele pode ser uma resposta, um protesto, um luto, uma reverência. O silêncio fala. E às vezes, como dizia Wittgenstein, ele fala justamente porque as palavras já não bastam. Heidegger talvez acrescentasse: é no silêncio que o ser nos sussurra.

Talvez a verdade, afinal, more no espaço entre o que conseguimos dizer e aquilo que ousamos silenciar.


sexta-feira, 27 de junho de 2025

Nó e o Fio

Numa manhã gelada deste inverno sorvia um mate, acredite, sol no rosto, vento gelado e fraco, frente ao mar em Garopaba, entre um mate e outro minha imaginação como sempre tamborilava na mente, foi quando senti a presença de mais alguém sentado ao meu lado, era a figura do velho Wittgenstein, enquanto enchia a cuia com agua quente, pensei: por que não bater um papo com ele? em português, é claro, então resolvi fazer, talvez a única pergunta que lhe faria algum sentido:

— Herr Wittgenstein, posso lhe fazer uma pergunta?

— Pode tentar. Mas lembre-se: muitas vezes, o que parece uma pergunta é apenas um nó na linguagem.

— É sobre isso, justamente. Há um problema que me inquieta há anos: qual é o sentido da vida?

(Wittgenstein fica em silêncio por um momento, observando o vapor que saia de dentro da cuia, como se a resposta estivesse ali.)

— Você quer uma resposta… ou quer que o problema desapareça?

— Bem, acho que quero entendê-lo.

— Entendê-lo é deixar de vê-lo como problema. Veja: você procura um sentido, como quem procura um objeto perdido. Mas talvez seja como tentar encontrar a moldura enquanto olha de dentro do quadro.

— Quer dizer que o problema está mal colocado?

— Ele está mal vivido. O problema não está no mundo. O mundo é o que é. O problema é o modo como você olha para ele esperando que ele fale algo que ele não sabe dizer.

— Então o sentido da vida não está no mundo?

— Exato. O sentido, se existe, está fora do mundo. Ou melhor: está no modo como você habita o mundo. É como a fé. Não é algo que se prova, mas que se vive.

— Isso é bonito, mas também meio frustrante. Eu queria uma resposta.

(Wittgenstein sorri com um certo cansaço austríaco.)

— Você quer uma resposta como quem quer uma chave para abrir a porta. Mas talvez a porta nunca tenha estado trancada.

— E o que faço, então?

— Olhe em volta. Veja como as palavras agem. Veja como as perguntas nascem. Veja como vive quem não se pergunta isso. A filosofia, meu caro, não resolve enigmas — ela mostra que o enigma era uma ilusão feita com palavras.

(Pausa. Ele toma um gole do mate que ofereci a ele.)

— Sabe, às vezes penso que filosofar é como desfazer um nó — mas o nó é feito com o próprio fio da nossa linguagem.

— E o que sobra depois que o nó é desfeito?

— O fio. Simples, contínuo, silencioso.

(E nos calamos. Pela primeira vez, parecia que estávamos dizendo alguma coisa.)


quarta-feira, 18 de junho de 2025

Hipérbato

 

Vamos falar de quando a língua pensa diferente de nós!

Sabe aquele momento em que a gente atropela a fala? Quando a frase sai torta, fora de ordem, e depois já era — porque palavra dita é como pedra atirada: impossível voltar atrás. O que sobra é o ouvinte tentando entender aquele som estranho, como quem monta um quebra-cabeça no ar. Isso acontece porque a língua, de vez em quando, resolve andar de lado, fazer um caminho esquisito — e nasce o tal do hipérbato: essa mania velha da linguagem de embaralhar a ordem das palavras. "De saudade morreu o velho marinheiro" — e não "O velho marinheiro morreu de saudade". Por que falar assim?

Não é só truque de poeta, nem preciosismo de livro antigo. O hipérbato revela algo do nosso próprio pensamento: esse jeito meio embolado, meio torto, de sentir antes de organizar, de querer dizer muita coisa ao mesmo tempo — como quem tropeça nas próprias ideias. Linguistas, psicólogos e até filósofos deram atenção a esse fenômeno. Talvez porque nele mora um segredo bonito: o de que nem sempre pensamos em linha reta.

Vamos tentar entender por que, às vezes, a fala pula etapas — e o que isso diz da nossa mente.

Hipérbato: quando a língua pensa diferente de nós

Às vezes alguém fala de um jeito estranho — e o ouvinte estranha também: "Por que ele fala assim?". É o efeito do hipérbato, essa figura de linguagem que desloca a ordem natural das palavras e, de algum modo misterioso, nos prende a atenção. "Grande é o mistério da vida" — e não "O mistério da vida é grande". Por quê? Porque quem fala assim quer que o “grande” venha primeiro no pensamento, mesmo que venha depois no dicionário.

O nome vem do grego: hyperbaton, que quer dizer "transposição". Desde a Antiguidade já se percebia esse prazer de mexer na ordem das coisas para que o pensamento ganhasse ritmo, surpresa ou impacto. Camões fazia isso. Machado de Assis fazia isso. E, sem perceber, o garçom que diz "A mesa três já pagou, ela" também faz — porque algo no cérebro pede esse "desarranjo" para tornar a fala mais expressiva.

Mas há mais aqui do que estilo. Há um funcionamento mental sendo revelado. Como explica Roman Jakobson, linguista russo que aproximou poesia e linguagem cotidiana, toda fala humana oscila entre duas forças: a da seleção (escolher palavras) e a da combinação (colocar palavras em ordem). O hipérbato brinca com essa segunda força — ele mistura o eixo do tempo e o eixo do espaço na frase. O que devia vir depois vem antes, e vice-versa. É uma microdesordem que gera significado novo.

Do lado da psicologia, isso também se explica. O cérebro adora padrões previsíveis — sujeito, verbo, objeto — porque gastam menos energia. Quando o padrão é quebrado, há uma microtensão cognitiva: o ouvinte "acorda", precisa reorganizar o sentido da frase. É como se o hipérbato dissesse: "Ei, preste atenção. Não é uma frase qualquer". William James, o grande psicólogo da atenção, já dizia: só percebemos o que varia; o resto escapa à consciência.

Lacan daria um sorriso: para ele, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, mas não qualquer linguagem — uma linguagem de deslocamentos, condensações, rupturas de ordem. O hipérbato, nesse sentido, é uma brecha onde o inconsciente vaza na fala cotidiana. Quando alguém diz "Feliz, ele não era" está dizendo mais do que a gramática permite — está dizendo também o modo torto e pulsante como o desejo se organiza.

Maurice Merleau-Ponty, filósofo da percepção, talvez acrescentasse: essa inversão é também corporal. O hipérbato desloca o corpo da frase, quebra sua linearidade, como um movimento inesperado no espaço. Por isso o leitor ou o ouvinte sente fisicamente a diferença — uma torção da língua que ecoa no corpo que escuta.

E tem ainda o lado da memória. Os poetas antigos sabiam: o que quebra a ordem fica mais fácil de lembrar. “Inocente é quem não tem culpa”, dizia a poesia latina — e o jogo da inversão fixava a ideia na mente. Publicitários fazem o mesmo hoje: "Porque você merece" soa mais impactante do que "Porque merece você". A inversão gruda no ouvido.

Talvez por isso o hipérbato nunca desapareça, mesmo nas falas banais: ele é um modo de marcar a palavra com intenção, emoção, singularidade. Quem fala assim não só informa — sugere, insinua, provoca.

No fim das contas, é como se a própria língua quisesse pensar diferente de nós. Ou melhor: como se nossa alma, ao falar, não suportasse ser tão direta quanto a lógica exige. Ela se curva, gira, troca de lugar — porque as ideias também chegam tortas, desencontradas, vivas.

Como dizia o velho Fernando Pessoa:

"Tudo é disperso, tudo é variação..."

Até a ordem das palavras. E talvez seja justamente nisso que mora o sentido mais verdadeiro da fala humana: no inesperado lugar onde a linguagem e o pensamento se cruzam — e tropeçam — um no outro.

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Fala porque pensa

Vamos falar sobre a origem do dizer e o silêncio que pensa

Já reparou que, às vezes, ficamos em silêncio, mas estamos cheios de ideias? Uma conversa pode estar parada por fora, mas por dentro mil pensamentos correm. Não estamos sempre dizendo tudo o que passa. Na verdade, quase nunca dizemos. O que chamamos de fala é só a ponta do iceberg do que se passa na mente.

E se for isso mesmo? Se a fala vier depois do pensamento — como uma tentativa de tradução imperfeita do que já se formou antes? Nesse ensaio, a proposta é considerar o contrário do que se costuma afirmar em certos círculos neurolinguísticos contemporâneos: não pensamos porque falamos, mas falamos porque pensamos.

O pensamento silencioso

Muitas de nossas decisões mais profundas são tomadas sem palavras. Você acorda e sabe que está triste — antes mesmo de conseguir explicar por quê. Há uma camada pré-verbal da consciência, cheia de imagens, sensações, intuições. A linguagem, nesse cenário, não é a origem do pensamento, mas um instrumento para compartilhá-lo com o outro (e, às vezes, consigo mesmo).

Descartes, no famoso penso, logo existo, não disse falo, logo penso. O pensamento é a base da subjetividade. É anterior à fala, mais amplo e mais sutil. O filósofo Henri Bergson defendia que a consciência excede a linguagem — que pensar é como nadar em um mar interno, enquanto falar é escolher uma garrafinha para conter o oceano.

Linguagem como casca do pensamento

Quantas vezes já sentimos algo que não conseguimos dizer? Ou percebemos que, ao tentar explicar uma ideia, ela se esvazia? Isso revela que a linguagem é um instrumento limitado frente à riqueza do pensamento. Falamos, sim, mas porque algo já foi fermentado antes. O pensamento é o forno; a fala, o pão assado.

O psicólogo suíço Jean Piaget argumentava que a linguagem é uma consequência do desenvolvimento cognitivo, e não sua causa. Para ele, a criança pensa antes de falar — e vai aprendendo a colocar em palavras o que já está se formando como raciocínio interno.

Quando a fala atrapalha

Num mundo ruidoso, talvez falar demais atrapalhe o pensamento. Distrações verbais, conversas vazias, impulsos de dizer antes de refletir — tudo isso pode desfigurar a verdadeira linha do pensamento. Um tuíte mal pensado, uma resposta impensada: palavras saem, mas não vieram do pensar, vieram da pressa.

Se fosse verdade que a fala cria o pensamento, todo mundo que fala muito pensaria melhor. Mas não é o que se vê. Pensar exige silêncio. A fala boa vem depois. Como o escritor que reescreve mil vezes antes de publicar. Como o sábio que ouve mais do que fala.

Pensar é mais que dizer

A mente humana é capaz de pensar com imagens, sons, metáforas internas, simulações motoras. Quando antecipamos um futuro possível, quando lembramos de um cheiro da infância, ou quando visualizamos um projeto de vida — nada disso precisa, necessariamente, da linguagem articulada.

A neurociência apoia essa pluralidade de formas de pensar. Antes da ativação das áreas verbais, há estímulos em regiões ligadas à emoção (amígdala), ao planejamento (córtex pré-frontal), à imaginação (hipocampo). Ou seja, o pensamento vem primeiro. A linguagem é um filtro — útil, poderoso, mas um filtro.

Fala é ponte, não semente

No fim das contas, falar porque se pensa é reconhecer que a fala não é a fonte da consciência, mas seu veículo. Pensar é existir num espaço íntimo, onde a palavra é convidada, não dona da casa. Só falamos porque temos algo a dizer. E esse algo nasce antes da fala.

Filosoficamente, talvez a fala seja apenas o momento em que o pensamento se arrisca no mundo. Nem todo pensamento vira palavra — e talvez ainda bem. Porque o silêncio também pensa. E, às vezes, é nele que se encontram as ideias mais verdadeiras.