Outro dia, percebi que passo boa parte do meu tempo tentando “dar conta” das coisas. Responder mensagens, pagar contas, cuidar da casa, resolver pendências. Como se cada tarefa fosse um bicho solto que preciso laçar e prender. Curioso é que, quanto mais dou conta, mais coisas surgem para serem domadas. Parece que as coisas se multiplicam quando sentem que estamos tentando dominá-las. E isso me fez pensar: será que as coisas são feitas para serem dominadas?
No
nosso cotidiano, falamos com naturalidade sobre “ter domínio” de algo: domínio
de uma língua, de um instrumento musical, de uma situação. Isso dá uma sensação
de controle, de segurança, até de poder. Mas o filósofo francês Georges
Bataille diria que aquilo que realmente importa na vida — como o sagrado, o
amor ou a liberdade — não se deixa dominar. O que se deixa dominar, ele diria,
é coisa. E talvez o mais trágico seja quando tentamos dominar o indominável,
como se tudo fosse coisa.
Quando
algo escapa ao nosso vocabulário, chamamos de “coisa”. Quando não sabemos o
nome de alguém, dizemos “aquela pessoa... aquela coisa ali...”. O nome é o
primeiro gesto de tentativa de domínio. Dar nome é cercar, é tentar conter o
que antes era fluxo. E quando não conseguimos nomear, a linguagem se refugia na
palavra mais vaga que temos: coisa. Mas essa palavra, ao invés de definir,
dissolve. Ela marca o ponto em que nossa razão falha e a realidade começa a se
expandir além das bordas do compreensível. Chamar de coisa é, paradoxalmente,
admitir que perdemos o controle. É o eco de um mistério que se recusa a caber
num dicionário.
As
coisas, no entanto, não são neutras. São extensões do nosso desejo. Quando
tento dominar o tempo, por exemplo, organizando agendas e cronogramas, na
verdade estou tentando não morrer esmagado pela velocidade dos dias. Quando
tento dominar um ambiente — arrumando, controlando o que entra e o que sai —
talvez esteja buscando um refúgio simbólico contra o caos interior. O domínio
das coisas não é apenas uma tarefa externa: é um modo de lidar com os próprios
fantasmas.
Mas
e se estivermos sendo dominados pelas coisas que acreditamos dominar? Um
exemplo banal: um celular. Dizemos que ele é uma ferramenta, mas é ele quem
dita nossos horários, atenção e até o modo como nos relacionamos. O que parecia
ser instrumento vira senhor. E o senhor vira escravo.
O
filósofo sul-coreano Byung-Chul Han comenta que vivemos uma época de excesso de
positividade, onde tudo precisa ser produtivo, mensurável, controlável. Isso
transforma até a alma em coisa — um objeto a ser aperfeiçoado. Nesse processo,
perdemos a capacidade de simplesmente estar, de conviver com o que não se
domina: o silêncio, a espera, o outro.
Dominar
as coisas pode ser necessário, claro. Não dá para viver como um faquir em
transe enquanto o boleto vence. Mas talvez o ponto esteja em reconhecer que há
uma diferença entre ter domínio e viver sob o regime do domínio. Há beleza na
entrega, valor no que escapa, verdade no que não pode ser aprisionado.
O
filósofo mineiro Vladimir Safatle afirma:
“Dominar
é o gesto de quem teme. O sujeito que precisa dominar é aquele que não suporta
a alteridade, que não suporta aquilo que não pode assimilar.”
Essa
frase nos convida a pensar que o impulso de dominar não vem da força, mas do
medo — o medo de não saber o que fazer diante do que é livre, fluido,
imprevisto. O domínio das coisas, então, se revela menos como conquista e mais
como defesa. Quando abrimos mão da obsessão por controlar tudo, talvez
comecemos a nos relacionar com o mundo de maneira mais verdadeira.
Quem
sabe, no fim das contas, a liberdade esteja menos em dominar as coisas e mais
em saber quando deixá-las ir.