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domingo, 18 de maio de 2025

Domínio das coisas

Outro dia, percebi que passo boa parte do meu tempo tentando “dar conta” das coisas. Responder mensagens, pagar contas, cuidar da casa, resolver pendências. Como se cada tarefa fosse um bicho solto que preciso laçar e prender. Curioso é que, quanto mais dou conta, mais coisas surgem para serem domadas. Parece que as coisas se multiplicam quando sentem que estamos tentando dominá-las. E isso me fez pensar: será que as coisas são feitas para serem dominadas?

No nosso cotidiano, falamos com naturalidade sobre “ter domínio” de algo: domínio de uma língua, de um instrumento musical, de uma situação. Isso dá uma sensação de controle, de segurança, até de poder. Mas o filósofo francês Georges Bataille diria que aquilo que realmente importa na vida — como o sagrado, o amor ou a liberdade — não se deixa dominar. O que se deixa dominar, ele diria, é coisa. E talvez o mais trágico seja quando tentamos dominar o indominável, como se tudo fosse coisa.

Quando algo escapa ao nosso vocabulário, chamamos de “coisa”. Quando não sabemos o nome de alguém, dizemos “aquela pessoa... aquela coisa ali...”. O nome é o primeiro gesto de tentativa de domínio. Dar nome é cercar, é tentar conter o que antes era fluxo. E quando não conseguimos nomear, a linguagem se refugia na palavra mais vaga que temos: coisa. Mas essa palavra, ao invés de definir, dissolve. Ela marca o ponto em que nossa razão falha e a realidade começa a se expandir além das bordas do compreensível. Chamar de coisa é, paradoxalmente, admitir que perdemos o controle. É o eco de um mistério que se recusa a caber num dicionário.

As coisas, no entanto, não são neutras. São extensões do nosso desejo. Quando tento dominar o tempo, por exemplo, organizando agendas e cronogramas, na verdade estou tentando não morrer esmagado pela velocidade dos dias. Quando tento dominar um ambiente — arrumando, controlando o que entra e o que sai — talvez esteja buscando um refúgio simbólico contra o caos interior. O domínio das coisas não é apenas uma tarefa externa: é um modo de lidar com os próprios fantasmas.

Mas e se estivermos sendo dominados pelas coisas que acreditamos dominar? Um exemplo banal: um celular. Dizemos que ele é uma ferramenta, mas é ele quem dita nossos horários, atenção e até o modo como nos relacionamos. O que parecia ser instrumento vira senhor. E o senhor vira escravo.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han comenta que vivemos uma época de excesso de positividade, onde tudo precisa ser produtivo, mensurável, controlável. Isso transforma até a alma em coisa — um objeto a ser aperfeiçoado. Nesse processo, perdemos a capacidade de simplesmente estar, de conviver com o que não se domina: o silêncio, a espera, o outro.

Dominar as coisas pode ser necessário, claro. Não dá para viver como um faquir em transe enquanto o boleto vence. Mas talvez o ponto esteja em reconhecer que há uma diferença entre ter domínio e viver sob o regime do domínio. Há beleza na entrega, valor no que escapa, verdade no que não pode ser aprisionado.

O filósofo mineiro Vladimir Safatle afirma:

“Dominar é o gesto de quem teme. O sujeito que precisa dominar é aquele que não suporta a alteridade, que não suporta aquilo que não pode assimilar.”

Essa frase nos convida a pensar que o impulso de dominar não vem da força, mas do medo — o medo de não saber o que fazer diante do que é livre, fluido, imprevisto. O domínio das coisas, então, se revela menos como conquista e mais como defesa. Quando abrimos mão da obsessão por controlar tudo, talvez comecemos a nos relacionar com o mundo de maneira mais verdadeira.

Quem sabe, no fim das contas, a liberdade esteja menos em dominar as coisas e mais em saber quando deixá-las ir.


terça-feira, 8 de outubro de 2024

Ditadura da Positividade

Vivemos em uma era em que o otimismo é tratado como uma virtude absoluta, quase uma obrigação moral. Não importa o que esteja acontecendo ao nosso redor, somos bombardeados com mensagens que nos dizem para “ver o lado positivo” e “ser gratos”. Enquanto a positividade tem seu valor, essa insistência no pensamento otimista a qualquer custo vem com um preço: ela invalida as emoções negativas que fazem parte da experiência humana e nos impede de lidar adequadamente com as dificuldades que a vida inevitavelmente traz.

Esse fenômeno, muitas vezes referido como “positividade tóxica”, tornou-se quase uma norma social. Quem nunca ouviu frases como “poderia ser pior” ou “tudo acontece por uma razão” no momento em que estava lidando com um fracasso ou perda? Por trás dessa mensagem aparentemente inofensiva está a ideia de que sentir-se mal, desanimado ou angustiado não é aceitável. A cultura do “vai dar tudo certo” nos força a mascarar nossas vulnerabilidades e a passar por cima de nossos sentimentos mais complexos.

A Era das Redes Sociais e a Propagação da Positividade

A disseminação da positividade tóxica encontrou terreno fértil nas redes sociais, onde somos bombardeados por imagens de vidas perfeitas, acompanhadas de legendas inspiradoras que nos encorajam a “manter o foco no que é bom”. Nesse ambiente, parece haver pouca ou nenhuma tolerância para expressar angústia ou dúvidas. Mostramos uma versão editada de nós mesmos, sempre sorridentes, sempre "conquistando", e qualquer sinal de falha ou tristeza é rapidamente criticado ou ignorado.

A pressão por mostrar um otimismo inabalável cria uma desconexão entre a vida que vivemos e a vida que aparentamos viver. Aqueles que se encontram lutando com a ansiedade, a depressão ou o luto podem sentir-se isolados, como se estivessem falhando por não conseguir manter o otimismo. Esse isolamento emocional alimenta um ciclo de sofrimento, onde as emoções legítimas são suprimidas em nome de uma felicidade superficial.

A Supressão do Negativo: Um Desafio para a Saúde Mental

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche afirmava que o sofrimento é uma parte essencial do crescimento humano, argumentando que, ao fugir do sofrimento, perdemos a oportunidade de amadurecer e aprender. Paradoxalmente, ao negar o espaço para a dor, perdemos também o espaço para a cura e a transformação. Ao longo da vida, experiências dolorosas – como a perda de um ente querido, o fracasso em um projeto pessoal ou profissional, ou até mesmo uma fase de dúvidas existenciais – são inevitáveis. Negar esses sentimentos não os faz desaparecer; apenas os enterra mais profundamente, o que pode resultar em efeitos negativos na saúde mental.

A psicologia também reforça essa visão. Estudos mostram que a repressão de emoções negativas pode levar a problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão. Além disso, forçar-se a “ser positivo” constantemente pode criar um cansaço emocional, onde a pessoa sente-se sobrecarregada pela exigência de manter uma fachada otimista.

Aceitação Emocional: Um Caminho para o Equilíbrio

Ao contrário do que a cultura de positividade excessiva sugere, aceitar emoções negativas e aprender a processá-las é uma maneira muito mais saudável de viver. O budismo, por exemplo, nos ensina a prática da aceitação plena da vida como ela é, sem tentar rejeitar o que não gostamos. O conceito de “equanimidade” nos ajuda a encontrar paz tanto nos momentos de alegria quanto nos momentos de tristeza, compreendendo que todas as emoções são transitórias.

A aceitação emocional não significa ceder ao pessimismo ou cair no desespero, mas sim dar a si mesmo a permissão para sentir o que está sentindo, sem o peso da expectativa de “ser feliz o tempo todo”. Ela envolve reconhecer a dor e permitir-se vivenciá-la, sabendo que isso faz parte do processo de cura e crescimento.

Rompendo com a Positividade Tóxica no Cotidiano

Para resistir à ditadura da positividade, é preciso, primeiro, reconhecer que ser humano é ser capaz de experimentar uma gama completa de emoções, tanto boas quanto ruins. Ao sermos honestos sobre nossas experiências e vulnerabilidades, permitimos que os outros também o sejam, criando uma cultura onde o apoio e a empatia prevaleçam sobre o julgamento. Isso pode começar em pequenas interações diárias. Quando um amigo desabafa, em vez de dizer “vai ficar tudo bem”, talvez a melhor resposta seja “eu entendo que isso é difícil para você, e estou aqui para ajudar”.

Tirar a máscara da felicidade constante pode também envolver se permitir momentos de pausa e reflexão. Questionar o que estamos sentindo de verdade, sem a necessidade de julgar ou modificar esses sentimentos, pode nos ajudar a reconectar com nossa autenticidade e humanidade.

Embora o otimismo tenha seu valor, a ditadura da positividade cria uma carga emocional desnecessária ao negar as realidades difíceis da vida. Para viver de maneira equilibrada e saudável, precisamos abraçar todas as emoções humanas, tanto as boas quanto as ruins, e lembrar que a autenticidade está em aceitar e processar o que sentimos, sem a obrigação de sorrir para tudo. Afinal, são as tempestades emocionais que nos ajudam a valorizar os momentos de sol, e é na aceitação plena da nossa humanidade que encontramos a verdadeira força.