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segunda-feira, 21 de julho de 2025

Fúrias Adormecidas

As Erínias no Espelho Contemporâneo

Na mitologia grega, as Fúrias — ou Erínias — eram três divindades do submundo encarregadas de punir os crimes que violavam a ordem moral, sobretudo os cometidos dentro da família. Chamavam-se Alecto, a que incita a ira implacável; Tisífone, a que vinga os assassinatos; e Megera, a que pune os atos de inveja e traição. Não eram seres simbólicos, mas entidades reais no imaginário grego, capazes de enlouquecer os culpados com sua perseguição incansável. Não se podia escapar delas, porque não eram simplesmente justiceiras: eram a própria culpa em forma de presença viva.

Hoje, em tempos onde o mito cedeu espaço ao discurso racional, não falamos mais das Erínias como deusas do submundo — mas talvez tenhamos apenas trocado seus nomes. Alecto agora se manifesta na raiva reprimida que explode em momentos de fúria súbita. Tisífone aparece nos olhos de quem não consegue esquecer uma injustiça ou uma violência sofrida. E Megera talvez resida nas relações desgastadas pelo ressentimento, onde o silêncio já não é paz, mas ameaça.

Nietzsche, em A Genealogia da Moral, sugeria que a violência — antes expressa externamente — foi aos poucos internalizada, dando origem à consciência e à culpa. Os impulsos agressivos, proibidos pelo convívio social, passaram a se voltar contra o próprio indivíduo. Isso significa que as Fúrias, impedidas de correr pelas ruas, passaram a correr por dentro de nós. Tornaram-se fúrias adormecidas: presentes, mas invisíveis, atentas aos nossos descuidos emocionais.

Na vida cotidiana, sentimos sua presença quando uma pequena contrariedade desencadeia uma reação desproporcional, ou quando uma discussão familiar reativa mágoas guardadas há décadas. Também se manifestam nos conflitos coletivos que parecem brotar do nada — como se houvesse um acúmulo histórico de dores mal digeridas, prontas para se expressar ao menor sinal. As redes sociais, com sua dinâmica polarizadora, talvez sejam o novo teatro das Erínias, onde a punição se dá por cliques e comentários, e a fúria toma a forma de cancelamento ou linchamento simbólico.

Mas nem tudo é vingança. Na tragédia Eumênides, de Ésquilo, as Fúrias passam por uma metamorfose. Após perseguirem incansavelmente Orestes por ter matado a mãe, elas são convencidas a abandonar a vingança cega e se tornam as Eumênides — “as benévolas” —, assumindo o papel de guardiãs da justiça. A transformação sugere que a fúria, quando escutada e acolhida, pode se tornar força construtiva.

Essa talvez seja a proposta filosófica mais urgente para o sujeito contemporâneo: reconhecer as próprias Erínias internas — Alecto, Tisífone e Megera —, não como inimigas a serem suprimidas, mas como partes legítimas da psique que exigem escuta. Em vez de negá-las ou explodi-las, podemos tentar transformá-las.

Dormir com as Fúrias é viver à beira de uma erupção. Dialogar com elas, no entanto, é começar a compreender o que em nós ainda clama por justiça, verdade ou reparação. Afinal, até mesmo as divindades do submundo podem, se escutadas, se tornar guardiãs da alma.


domingo, 2 de junho de 2024

Propensão à Violência

A violência é um tema que permeia diversos aspectos da vida cotidiana. Desde brigas de trânsito até conflitos em escolas, passando por discussões acaloradas nas redes sociais, a propensão à violência parece estar presente em muitas interações humanas. Neste artigo, vamos analisar algumas situações do cotidiano onde a violência se manifesta e traremos à discussão as perspectivas de um filósofo e um sociólogo para aprofundar nossa compreensão sobre o tema.

Situações Cotidianas de Violência

Brigas de Trânsito: Quem nunca presenciou ou, infelizmente, foi parte de uma briga de trânsito? Um corte abrupto, um sinal de luz alta, e pronto: palavras agressivas, gestos obscenos e, em casos extremos, confrontos físicos. O trânsito, que deveria ser um espaço de convivência e cooperação, frequentemente se transforma em um campo de batalha. Essa propensão à violência no trânsito revela muito sobre a pressão e o estresse que muitos de nós carregamos no dia a dia.

Bullying Escolar: Nas escolas, o bullying é uma forma alarmante de violência. Crianças e adolescentes são alvo de agressões físicas e psicológicas que podem deixar marcas profundas. A violência entre jovens pode ser vista como um reflexo das dinâmicas sociais e familiares que eles vivenciam, bem como uma forma de tentar afirmar poder e controle em um ambiente competitivo.

Redes Sociais: A internet, especialmente as redes sociais, tornou-se um espaço propício para a manifestação de violência verbal. Discussões que começam de forma civilizada podem rapidamente escalar para ataques pessoais e ameaças. A aparente anonimidade e a distância física proporcionadas pela internet parecem liberar os freios inibitórios que normalmente impediriam tal comportamento em interações face a face.

Perspectivas Filosóficas

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche oferece uma visão interessante sobre a violência. Em sua obra "Além do Bem e do Mal", Nietzsche sugere que a violência é uma expressão da vontade de poder, uma força inerente a todos os seres humanos que busca afirmar-se e dominar. Segundo Nietzsche, essa vontade de poder pode ser canalizada de diversas formas, não necessariamente violentas, mas em contextos de estresse e pressão social, a violência se torna uma saída mais provável.

Perspectivas Sociológicas

O sociólogo francês Pierre Bourdieu contribui para essa discussão com o conceito de "violência simbólica". Bourdieu argumenta que a violência não é apenas física, mas também simbólica, manifestando-se através de dominação cultural e imposição de normas sociais que oprimem determinados grupos. Por exemplo, quando um jovem é ridicularizado na escola por não se conformar aos padrões de comportamento ou aparência predominantes, ele está sofrendo uma forma de violência simbólica que pode ter consequências tão devastadoras quanto a violência física.

Reflexão Final

A propensão à violência, portanto, pode ser vista como um fenômeno complexo, enraizado em fatores psicológicos, sociais e culturais. Situações cotidianas como brigas de trânsito, bullying escolar e discussões nas redes sociais são apenas a ponta do iceberg de um problema mais profundo que envolve a nossa natureza humana e as estruturas sociais em que vivemos.

Entender a violência como uma expressão da vontade de poder, à la Nietzsche, ou como uma forma de dominação simbólica, segundo Bourdieu, nos ajuda a refletir sobre as maneiras de lidar com esse problema. Promover a empatia, a educação emocional e o diálogo aberto são caminhos que podem ajudar a reduzir a propensão à violência em nosso cotidiano. Que possamos transformar nossos conflitos e tensões em oportunidades de crescimento e entendimento mútuo, construindo uma sociedade mais justa e pacífica.