As Erínias no Espelho Contemporâneo
Na
mitologia grega, as Fúrias — ou Erínias — eram três divindades do submundo
encarregadas de punir os crimes que violavam a ordem moral, sobretudo os
cometidos dentro da família. Chamavam-se Alecto, a que incita a ira
implacável; Tisífone, a que vinga os assassinatos; e Megera, a
que pune os atos de inveja e traição. Não eram seres simbólicos, mas entidades
reais no imaginário grego, capazes de enlouquecer os culpados com sua
perseguição incansável. Não se podia escapar delas, porque não eram
simplesmente justiceiras: eram a própria culpa em forma de presença viva.
Hoje,
em tempos onde o mito cedeu espaço ao discurso racional, não falamos mais das
Erínias como deusas do submundo — mas talvez tenhamos apenas trocado seus
nomes. Alecto agora se manifesta na raiva reprimida que explode em momentos de
fúria súbita. Tisífone aparece nos olhos de quem não consegue esquecer uma
injustiça ou uma violência sofrida. E Megera talvez resida nas relações
desgastadas pelo ressentimento, onde o silêncio já não é paz, mas ameaça.
Nietzsche,
em A Genealogia da Moral, sugeria que a violência — antes expressa
externamente — foi aos poucos internalizada, dando origem à consciência e à
culpa. Os impulsos agressivos, proibidos pelo convívio social, passaram a se
voltar contra o próprio indivíduo. Isso significa que as Fúrias, impedidas de
correr pelas ruas, passaram a correr por dentro de nós. Tornaram-se fúrias
adormecidas: presentes, mas invisíveis, atentas aos nossos descuidos
emocionais.
Na
vida cotidiana, sentimos sua presença quando uma pequena contrariedade
desencadeia uma reação desproporcional, ou quando uma discussão familiar
reativa mágoas guardadas há décadas. Também se manifestam nos conflitos
coletivos que parecem brotar do nada — como se houvesse um acúmulo histórico de
dores mal digeridas, prontas para se expressar ao menor sinal. As redes
sociais, com sua dinâmica polarizadora, talvez sejam o novo teatro das Erínias,
onde a punição se dá por cliques e comentários, e a fúria toma a forma de
cancelamento ou linchamento simbólico.
Mas
nem tudo é vingança. Na tragédia Eumênides, de Ésquilo, as Fúrias
passam por uma metamorfose. Após perseguirem incansavelmente Orestes por ter
matado a mãe, elas são convencidas a abandonar a vingança cega e se tornam as Eumênides
— “as benévolas” —, assumindo o papel de guardiãs da justiça. A transformação
sugere que a fúria, quando escutada e acolhida, pode se tornar força
construtiva.
Essa
talvez seja a proposta filosófica mais urgente para o sujeito contemporâneo:
reconhecer as próprias Erínias internas — Alecto, Tisífone e Megera —, não como
inimigas a serem suprimidas, mas como partes legítimas da psique que exigem
escuta. Em vez de negá-las ou explodi-las, podemos tentar transformá-las.
Dormir
com as Fúrias é viver à beira de uma erupção. Dialogar com elas, no entanto, é
começar a compreender o que em nós ainda clama por justiça, verdade ou
reparação. Afinal, até mesmo as divindades do submundo podem, se escutadas, se
tornar guardiãs da alma.
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