Quando Vivemos no Lugar de Nós Mesmos
Às
vezes, me pergunto se todas as pessoas que encontro por aí são realmente quem
parecem ser — ou se são apenas versões cuidadosamente ensaiadas de si mesmas. É
uma sensação estranha, quase paranoica, mas que se infiltra nas conversas de
elevador, nos sorrisos educados do escritório, até nas fotos compartilhadas nas
redes sociais. A impressão é que há muita gente interpretando um papel, como se
a vida fosse uma peça onde cada um recebe um roteiro invisível.
A
história diz que Júlio César usava sósias para confundir inimigos e proteger
sua vida. O sósia não precisava ser César — só precisava parecer o suficiente
para que ninguém notasse a diferença. E essa pequena diferença, quase
imperceptível, talvez seja o ponto mais filosófico da questão. Quantas vezes
passamos pelos dias como sósias de nós mesmos, sem que ninguém perceba?
O
Teatro da Aparência
A
vida cotidiana exige um certo grau de atuação. Quando atendemos o telefone com
a voz mais simpática que conseguimos forçar ou quando sorrimos para alguém
mesmo sem vontade, já estamos assumindo um papel. Isso faz parte do jogo social
e não há nada de errado nisso — desde que a máscara não se cole ao rosto.
O
problema começa quando essa atuação deixa de ser uma escolha consciente e se
transforma na única forma de existir. O sujeito que sempre concorda com os
outros para evitar conflitos, a colega que só reproduz frases prontas para
parecer interessante, o amigo que faz piadas que não acha engraçadas para se
encaixar — todos são sósias de si mesmos. Eles desempenham versões adaptadas ao
gosto do público, mas perdem a centelha de algo genuíno.
Georg
Simmel, sociólogo alemão, escreveu sobre como a vida moderna fragmenta a
personalidade. Ele dizia que a pressão das convenções sociais cria uma espécie
de casca, onde cada um mostra apenas o que é esperado para cada ocasião. O
verdadeiro "eu" se esconde por trás dessa casca, protegido, mas
também sufocado.
O
Risco de Esquecer Quem Somos
O
que acontece com o sósia que passa muito tempo no lugar do original? Talvez ele
comece a acreditar que é o verdadeiro. O risco mais sutil da vida contemporânea
é justamente esse: viver tão preso aos papéis sociais que acabamos esquecendo
que, em algum momento, já fomos outra coisa.
Esse
processo não acontece de uma hora para outra. Primeiro, deixamos de dizer o que
realmente pensamos para evitar atritos. Depois, escolhemos roupas, músicas ou
até mesmo opiniões que se encaixam melhor no ambiente ao redor. Quando nos
damos conta, há apenas um eco — uma cópia bem treinada, mas vazia.
N.
Sri Ram, em Pensamentos para Aspirantes, fala sobre a diferença entre ser
verdadeiro e parecer verdadeiro. Ele sugere que muitas pessoas se apegam à
imagem da bondade ou da sabedoria sem nunca tocar na essência dessas coisas. A
verdade, segundo ele, é sempre uma força viva — nunca uma imitação morta.
Recuperar
o Original
Talvez
a pergunta mais difícil que podemos nos fazer seja: quem eu sou quando ninguém
está olhando? Não quando estou tentando agradar ou corresponder expectativas,
mas quando fico sozinho, sem espelhos nem testemunhas.
Voltar
ao original pode ser um trabalho longo e delicado. Não se trata de rejeitar
todas as máscaras — porque algumas são necessárias —, mas de lembrar que existe
algo por trás delas.
Talvez
baste começar com pequenos gestos: dizer não quando sentimos que é não, mesmo
que pareça grosseiro. Rir só quando realmente achamos graça. Permitir silêncios
em vez de preencher o vazio com frases sem importância.
A
Vida Não Se Lembra dos Sósias
No
fim das contas, ninguém sabe o nome dos sósias de César. Eles cumpriram um
papel importante, mas a história só guarda a lembrança daqueles que tiveram a
coragem de ser quem eram, para o bem ou para o mal.
Talvez
a vida funcione da mesma maneira. Podemos passar os dias como cópias
bem-feitas, protegidos e discretos — ou podemos correr o risco de ser
originais, ainda que isso signifique desagradar, tropeçar ou ficar um pouco
fora do lugar.
A
escolha parece óbvia, mas não é. Afinal, viver como sósia pode ser confortável.
Ser o original, por outro lado, é sempre um salto no escuro.
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