O Sono da Existência
Às
vezes, vejo certas pessoas e me pergunto: será que elas estão realmente
acordadas? Andam, falam, trabalham, discutem política no bar, reclamam da vida,
mas há algo ausente no olhar. Como se vivessem em um estado de sonambulismo
existencial, repetindo gestos automáticos sem jamais despertarem para si
mesmas. Chamo essa figura de o dormidor – não aquele que apenas dorme à noite,
mas aquele que faz do próprio viver um sono profundo.
O
Sono da Consciência
Platão,
em sua alegoria da caverna, nos apresentou prisioneiros acorrentados, vendo
sombras na parede e acreditando que aquilo era toda a realidade. O dormidor é
uma versão moderna desses prisioneiros, mas sem correntes visíveis. Suas
algemas são feitas de rotina, distração e conformismo. Ele não questiona, não
se inquieta, não percebe o absurdo da vida ou a beleza do instante. Apenas
segue o fluxo, como um rio que já esqueceu que pode desaguar no oceano.
Sri
Ram, em O Pensamento Vivo de Krishnamurti, sugere que há uma diferença entre
ver e realmente enxergar. O dormidor olha o mundo, mas não vê. Ele lê frases
motivacionais, mas nunca desperta para o real significado. Vive como um animal
domesticado pelo cotidiano, onde tudo se repete sem variação significativa.
O
Sonho do Dormidor
Mas
o dormidor também sonha. E esse é o seu maior problema. Ele se ilude com sonhos
emprestados, vendidos a ele como verdades absolutas: a carreira de sucesso, a
casa perfeita, o status, a falsa segurança. Seu sonho não é uma aventura, mas
um roteiro previsível. Ele corre, se cansa, e no final percebe que estava
dormindo o tempo todo. O despertar, quando acontece, vem tarde demais – um
vislumbre fugaz antes da noite definitiva.
Nietzsche,
ao falar do eterno retorno, perguntaria ao dormidor: se tivesse que viver essa
mesma vida infinitas vezes, sem mudar nada, isso lhe daria alegria ou
desespero? A resposta diria muito sobre o seu grau de adormecimento.
Repetição
e Alienação
John
Locke pode ser conectado ao tema do dormidor através de sua teoria do
conhecimento e da identidade pessoal. Ele acreditava que a mente humana nasce
como uma tábula rasa – uma folha em branco que vai sendo preenchida pelas
experiências sensoriais e pela reflexão.
O
dormidor, nesse sentido, seria aquele que não usa sua experiência para
construir um pensamento próprio, vivendo de forma passiva, sem refletir
criticamente sobre o que recebe do mundo. Ele aceita tradições, normas e
verdades sem questionamento, como se sua mente nunca tivesse saído da inércia
do estado inicial.
Além
disso, Locke defendia que a identidade pessoal se baseia na continuidade da
consciência ao longo do tempo. Mas e se essa consciência está adormecida? O
dormidor seria alguém cuja identidade se dissolve na repetição e na alienação,
vivendo sem realmente formar uma noção própria de si.
Assim,
aplicar Locke ao tema do dormidor nos leva a uma reflexão sobre a
responsabilidade de despertar para a própria existência e o perigo de viver
apenas como uma página escrita por outros.
O
Despertar Possível
O
que desperta alguém? Talvez um abalo – uma perda, um encontro, uma pergunta
inesperada. Às vezes, basta um instante de silêncio, um raio de lucidez
cortando a névoa, para que o dormidor perceba que sua vida não é apenas um
ciclo mecânico. Ele descobre, então, que sempre houve uma porta para fora do
labirinto. Apenas nunca se perguntou se deveria abrir.
O
risco, claro, é que despertar pode ser assustador. De repente, tudo o que
parecia certo se desfaz. E agora? Como seguir sem as muletas que sustentavam
sua sonolência? Mas é só na vigília que se vive de verdade.
Talvez
seja essa a escolha fundamental da existência: continuar dormindo, confortável
em ilusões, ou despertar – mesmo que a luz do dia revele verdades
desconfortáveis.
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