Sabe aquele momento em que você se olha no espelho e se pergunta: "Eu sou mesmo quem acho que sou?" Ou quando, no meio de uma conversa, surge o pensamento estranho: "E se eu simplesmente não existisse?" Essas perguntas que parecem brotar de uma mente inquieta já atormentavam filósofos há séculos. E um dos que mais se debruçou sobre essa questão foi Avicena (Ibn Sina), o grande pensador persa do século XI.
Avicena
estabeleceu uma distinção fundamental entre essência e existência. Para ele, a
essência de algo (o que uma coisa é) e sua existência (o fato de que ela é) são
separadas. A essência de um cavalo, por exemplo, não implica que ele existe de
fato – ele poderia apenas ser uma ideia na mente de alguém. Isso significa que
a existência não está automaticamente contida na essência de um ser
contingente; para existir, ele precisa receber a existência de algo que já
existe por si mesmo.
Aqui
entra o conceito de Ser Necessário, uma das contribuições mais marcantes de
Avicena. Se tudo no mundo precisa receber a existência de algo anterior, então
deve haver um ser cuja existência não dependa de nada – um ser que seja
existência pura, sem distinção entre essência e existência. Esse Ser
Necessário, para Avicena, é Deus. Sem Ele, nada mais poderia existir, pois tudo
o que encontramos no mundo é contingente, ou seja, poderia não existir.
O
impacto dessa ideia foi profundo na filosofia ocidental. Tomás de Aquino, por
exemplo, absorveu e reelaborou a distinção entre essência e existência em sua
própria filosofia, influenciando séculos de pensamento cristão. No entanto, o
que torna Avicena tão inovador é a sua abordagem quase matemática do problema:
ele raciocina como um lógico rigoroso, deduzindo as implicações metafísicas do
ser de maneira metódica.
Agora,
voltemos àquela olhada no espelho. Se seguirmos Avicena, a pergunta "quem
sou eu?" ganha novos contornos. Não basta apenas saber nossa essência (ser
humano, pensante, consciente), mas entender que nossa existência não é
garantida por nós mesmos. Em última análise, existimos porque algo nos concedeu
essa existência. Somos, de certo modo, dependentes do Ser Necessário – como
notas musicais que só ressoam porque há um instrumento para tocá-las.
Esse
pensamento nos leva a uma reflexão mais profunda sobre a nossa posição no
universo. Se nossa existência é recebida, qual é o propósito dessa concessão? E
se a essência não garante a existência, até que ponto podemos afirmar que somos
donos de nossa própria realidade?
Em
tempos de identidades fluidas e realidades virtuais, a separação entre essência
e existência pode ser mais relevante do que nunca. Afinal, será que nossa
essência se mantém quando nos projetamos para o mundo digital? Ou será que o
simples ato de existir em um espaço virtual altera a essência do que somos? Se
Avicena estivesse aqui hoje, talvez se perguntasse: "O avatar de um
indivíduo no metaverso tem essência ou apenas existência temporária?"
Questões que, mil anos depois, continuam assombrando nossa busca por sentido.
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