“O que é cultura quando já não há necessidade de criar, mas apenas de preservar a aparência de civilização?”
É
possível estar dentro de uma cultura e, ao mesmo tempo, não vê-la? Como o peixe
que ignora a água, a cultura burguesa se tornou, para muitos, o pano de fundo
invisível da vida cotidiana. Ela não se apresenta apenas em obras de arte,
modas ou ideologias explícitas, mas está na lógica com que organizamos nosso
tempo, atribuímos valor às coisas, elegemos o sucesso e suportamos o fracasso.
Este ensaio propõe uma análise filosófica e sociológica da cultura burguesa
como forma dominante de subjetivação, poder e estética na modernidade,
revelando seu percurso histórico, suas contradições e seus efeitos sobre o
indivíduo e a coletividade.
I.
Origens: a burguesia como classe revolucionária
No
século XVIII, a burguesia foi o motor de uma das maiores transformações
históricas da humanidade. Ao romper com a ordem feudal e absolutista, encarnou
a promessa da liberdade individual, da propriedade privada e do progresso
racional. Marx e Engels, no Manifesto Comunista,
reconhecem o papel histórico da burguesia como a classe que “revolucionou
continuamente os meios de produção” e dissolveu “todas as relações fixas e
enferrujadas”. Para eles, a burguesia foi inicialmente uma força libertadora —
mas ao custo de subordinar todas as esferas da vida à lógica do capital.
Se
antes cultura era expressão de um ethos aristocrático, de uma identidade
orgânica entre arte e religião, com a ascensão da burguesia, a cultura começa a
adquirir feições utilitárias, reprodutíveis, domesticáveis. A arte se torna
mercadoria, a educação um investimento, o gosto uma forma de distinção.
II.
Cultura como distinção: Bourdieu e o gosto burguês
Pierre
Bourdieu, em A Distinção, lança uma das críticas mais
incisivas à cultura burguesa moderna: ela se legitima como “cultura superior”,
mas é, antes de tudo, uma cultura de dominação simbólica. O que chamamos de
“bom gosto” ou “refinamento” nada mais é do que a estetização de um privilégio
de classe. A burguesia cultiva, organiza e reproduz uma forma de vida que se
pretende universal, mas é profundamente excludente. O acesso a museus,
concertos, literatura clássica ou mesmo a determinados modos de falar e se
vestir são formas sutis de marcar diferença e afirmar superioridade.
No
cotidiano, essa lógica se traduz em micropráticas: o tipo de café que se bebe,
a escolha da escola dos filhos, o bairro onde se mora. A cultura burguesa não é
só o que se consome, mas o modo como se habita o mundo — com um constante
esforço de distinção.
III.
O sujeito burguês: liberdade ou performance?
O
sujeito burguês, desde Kant, é aquele que pensa por si mesmo, que assume
sua autonomia e age conforme sua razão. Mas essa imagem entra em crise com o
avanço do capitalismo tardio. A racionalidade instrumental descrita por Max
Weber transforma o mundo num sistema de engrenagens, em que tudo é
mensurado, planejado, avaliado. A cultura burguesa se torna então uma
performance permanente — onde o eu precisa dar certo, mostrar resultado, ter um
plano.
Byung-Chul
Han,
em A Sociedade do Cansaço, argumenta que a cultura burguesa
contemporânea trocou o dever pelo desempenho. Não se é mais reprimido por um
pai severo, mas por si mesmo — pela obrigação de estar sempre produtivo,
saudável, informado, conectado, interessante. O sujeito burguês moderno, longe
de ser livre, está aprisionado num espelho onde só vê a si mesmo como projeto
de sucesso.
IV.
Estetização da vida: da arte à aparência
A
cultura burguesa desenvolveu um culto à estética que transcende a arte. Walter
Benjamin já havia diagnosticado esse movimento em A Obra de Arte na Era
de sua Reprodutibilidade Técnica, mostrando como a aura da arte foi
dissolvida pela sua industrialização — e como a cultura burguesa reagiu
estetizando tudo: desde o urbanismo até a política.
Hoje,
essa estetização é visível nas redes sociais, nos interiores instagramáveis,
nos rituais do consumo gourmet. Tudo é aparência, tudo é curadoria de si mesmo.
A cultura burguesa não precisa mais de museus, pois ela transformou o cotidiano
em vitrine. Mas essa estética esconde uma fragilidade: o medo do vazio, da
insignificância, da falência simbólica.
V.
Resistência e alternativas
Mas
a cultura burguesa, embora hegemônica, não é invulnerável. Ela é constantemente
desafiada por formas culturais marginais, populares, periféricas, indígenas,
afrodescendentes. Essas culturas não apenas denunciam as exclusões do modelo
burguês, mas propõem formas outras de viver, de estar no mundo, de narrar o
tempo.
Boaventura
de Sousa Santos fala da “sociologia das ausências”, que
busca dar visibilidade a experiências e saberes silenciados pela razão
ocidental burguesa. A cultura burguesa, com seu racionalismo, seu
individualismo e seu culto ao sucesso, se mostra, cada vez mais, como uma cultura
da escassez simbólica. Frente às crises ecológicas, sociais e espirituais do
presente, talvez seja hora de buscar outros modos de cultura — menos
performáticos e mais relacionais.
Cultura
como escolha de mundo
A
cultura burguesa não é apenas uma forma de viver, mas uma forma de escolher o
mundo — um mundo onde o valor é mensurado em status, desempenho e estética. Ela
teve sua função histórica, mas também carrega contradições que hoje se tornam
insuportáveis para muitos.
Se
a cultura é o solo onde se semeia o sentido, talvez devamos perguntar: que tipo
de cultura pode florescer um mundo mais justo, mais sensível, mais habitável?
Como
escreveu Nietzsche: "É preciso ter o caos cá dentro para gerar
uma estrela dançante." Talvez esteja na hora de permitir que outras
estrelas brilhem — mesmo que à custa de romper com a velha e segura elegância
burguesa.
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