Na república dos miseráveis
Em
certos momentos da história, as polarizações políticas chegam a tal ponto de
desgaste que se revela uma realidade grotesca: tanto o "lado A"
quanto o "lado B" parecem igualmente nocivos ao bem comum. Nessa
arena, em que promessas são feitas com sotaque de salvação, mas se cumprem com
tons de destruição, a população não encontra um projeto de futuro — apenas
sobrevive numa república de miseráveis. Essa miséria não é apenas econômica,
mas simbólica, moral, cultural e política. É o empobrecimento da própria
imaginação coletiva sobre o que é viver em sociedade.
Essa
aberração histórica não é novidade. Acontece quando o tempo social se desfaz do
horizonte utópico e passa a funcionar apenas como presente contínuo — um
presente que se repete, se deteriora, e ao qual nos acostumamos. Como nos
alerta Walter Benjamin, em sua Tese sobre o Conceito de História,
a catástrofe não é o evento espetacular, mas o estado de coisas que se
perpetua. A miséria da república é, portanto, uma catástrofe constante, mantida
com naturalidade.
Lembro
que Zygmunt Bauman escreveu que a sociedade moderna líquida tende a
produzir “refugos humanos”: aqueles cuja presença não é útil ao sistema, mas
mesmo assim os refugos chegam ao poder e diante e sob os pés imundos deles,
suas barrigas enormes, inchadas, alimentadas pelas lagrimas de burgueses e
proletários, padecemos!
A
polarização como farsa dialética
A
polarização política, em contextos de decadência, simula um embate entre
opostos, mas esconde uma simetria profunda: ambos os lados já não representam
alternativas reais, mas sim versões diferentes do mesmo vício estrutural. A
"esquerda" e a "direita", nesses momentos, deixam de ser
ideologias e passam a ser marcas, como se a política tivesse se
convertido em um mercado de ressentimentos.
Guy
Debord, em A Sociedade do Espetáculo, antecipa essa
crítica: o espetáculo não é apenas entretenimento, mas o modo como toda a vida
social se organiza. A política vira teatro, e a miséria do povo é o cenário
permanente. A escolha entre A e B, nesse sentido, é como escolher entre
anúncios de sabão em pó: diferentes rótulos, mesma sujeira.
A
degradação do coletivo
A
república dos miseráveis nasce quando a coletividade se torna refém de
individualismos vazios, onde a solidariedade é confundida com caridade e o
pacto social se reduz à sobrevivência. A crise não é só das instituições, mas
da própria ideia de povo enquanto sujeito político.
Maurice
Halbwachs, com sua teoria da memória coletiva, nos ajuda a
entender como a história é manipulada para alimentar as polarizações: versões
parciais, heróis inventados, vilões exagerados. O passado é usado como munição
simbólica. Assim, cada lado tenta sequestrar a narrativa nacional, convertendo
a memória em arma, e não em lição.
O
resultado é um povo que não se reconhece mais em si mesmo. Os miseráveis dessa
república não são apenas pobres, mas também exilados simbólicos de sua própria
história. O que se perde não é só o poder de compra — é o poder de significar o
mundo.
A
banalidade do mal político
Hannah
Arendt, em Eichmann em Jerusalém, fala da
"banalidade do mal": não o monstro ideológico, mas o funcionário que
cumpre ordens sem refletir. Na república dos miseráveis, os líderes se tornam
figuras banais: repetem slogans, distribuem culpa, fazem do poder um exercício
cínico. Já não há projeto, apenas manutenção. O mal não é planejado em
gabinetes secretos — ele acontece no cotidiano, nas negligências políticas e
nas manipulações midiáticas que anestesiam o povo.
A
saída: pensar o impensável
Segundo
Cornelius Castoriadis, uma sociedade só é verdadeiramente viva quando é
capaz de se auto-instituir, ou seja, de reinventar suas próprias regras
e significados. Quando A e B são ruínas concorrentes, é hora de criar o
"C": um novo imaginário social, onde o poder volta a ser um serviço,
e não um espólio.
É
preciso recuperar a política como espaço de invenção e não apenas de reação.
Isso exige não só novos líderes, mas novas formas de liderar. Exige também um
povo que se veja não como massa manipulável, mas como fonte originária de
legitimidade. É um trabalho árduo, quase subterrâneo, mas essencial.
As
aberrações históricas não surgem do nada. São produtos de processos longos de
apodrecimento institucional, simbólico e afetivo. Quando a polarização revela
que "A" e "B" são faces do mesmo fracasso, a população —
esgotada, desiludida — vive na sombra de um país que poderia ter sido.
Mas
esse momento de ruína também pode ser fértil. Como diria Gramsci, “o
velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer; nesse interregno, aparecem
os monstros.” Só que os monstros não são o fim da história. São sintomas. A
pergunta que resta é: quem terá coragem de criar o inédito? Pior ainda, não
nasceu, pelo menos desconheço quem seja o “C”.
À
procura do “C” — o invisível que pode vir a ser
Vivemos
em um tempo em que os discursos envelhecem antes mesmo de amadurecer, e as
alternativas políticas mais parecem reféns do passado do que projetos para o
futuro. Neste cenário, a busca pelo “C” — esse outro caminho que não é nem A
nem B — se torna uma espécie de expedição filosófica, quase mística. O “C” não
está pronto, não tem sigla, não aparece nas manchetes. Mas talvez esteja
sussurrando nos desvãos da vida comum.
Não
é fácil ouvir esse sussurro. A algazarra do mundo atual foi feita para abafar
qualquer voz que não grite. E o “C”, se existe, é um corpo estranho: tímido,
talvez incômodo, porque não se encaixa nas expectativas que o velho mundo nos
ensinou a ter.
Onde
habita o “C”?
Talvez
o “C” habite aquele trabalhador que organiza uma cooperativa onde antes havia
competição cega. Talvez more naquela professora que decide ensinar pensamento
crítico mesmo num sistema que quer apenas repetição. Ou então esteja na
juventude que se recusa a escolher entre dois males e prefere plantar um
coletivo, uma horta, uma rede de apoio. Não porque seja romântica, mas porque
entendeu que a política também nasce da vizinhança, da escuta, da ternura.
O
“C” pode ser o gesto pequeno que recusa o cinismo.
E
como diria Boaventura de Sousa Santos, é no conhecimento nascido da
experiência vivida, nas epistemologias do Sul, que muitas vezes moram os
saberes que o mundo dominante insiste em deslegitimar. O “C” pode estar nesses
saberes periféricos, populares, não institucionalizados. Saberes que falam de
mundo sem precisar gritar “revolução” — mas que já são, em si, revolucionários.
A
política como imaginação moral
Martha
Nussbaum, ao falar da literatura como instrumento político,
defende que a empatia é uma forma de inteligência moral. Talvez estejamos
precisando menos de líderes fortes e mais de sensibilidades profundas. O “C”
não será um salvador — será uma coletividade desperta.
Para
isso, é preciso recuperar a política como um campo de criação, e não de
obediência. Como nos propõe Cornelius Castoriadis, uma sociedade viva se
reconhece pela sua capacidade de criar significados próprios — e não apenas
reproduzir modelos. Isso implica que o “C” não será dado. Ele será inventado.
Esperança,
mas não ilusão
Não
se trata de idealismo ingênuo. O “C” pode falhar. Pode até ser absorvido,
corrompido, distorcido. Mas como dizia Ernst Bloch, em O Princípio
Esperança, há uma utopia concreta que pulsa nos gestos que ainda não foram
cancelados pelo real. Essa esperança não é consolo — é resistência.
Talvez
a primeira tarefa seja descondicionar o olhar: deixar de buscar o “C”
com os critérios de sucesso que aprendemos com A e B. Ele não será brilhante,
nem popular de início. Pode até parecer fracasso. Mas o novo, quando é
verdadeiro, quase sempre nasce com cara de erro — porque desafia as formas
gastas de julgar o mundo.
Somos
parte da resposta
O
“C” ainda é mistério. Mas como toda semente, precisa de solo, cuidado e tempo.
Ele pode estar sendo gestado nas margens, nos silêncios, nos grupos pequenos
que insistem em conversar quando todos só querem brigar. Pode estar na palavra
que consola, no afeto que resiste, na ética que sobrevive.
Talvez
nunca vejamos o “C” se tornar maioria. Mas já é revolução o fato de continuarmos
buscando por ele, mesmo quando tudo ao redor nos empurra de volta para o
mesmo jogo desgastado.
No
fim, como escreveu Clarice Lispector:
“Liberdade
é pouco. O que eu quero ainda não tem nome.”
O
“C” talvez seja isso. Algo que ainda não tem nome. Mas que, se tiver coragem,
pode começar com você.
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