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quarta-feira, 5 de março de 2025

Preconceito X Preconceito

Às vezes, o preconceito mais silencioso é aquele que se disfarça de virtude: o preconceito contra o preconceito. A frase soa quase como um jogo de palavras, uma pegadinha lógica, mas esconde um dilema sutil que atravessa nossos dias sem que percebamos. Vivemos numa época que se orgulha de ser inclusiva, aberta e tolerante – e isso, claro, é um avanço civilizatório. O problema é que, na ânsia de combater velhos vícios, corremos o risco de cair numa armadilha moral: excluir quem ainda não se libertou dos seus próprios preconceitos.

O cenário é fácil de visualizar. Na mesa do bar, alguém solta uma opinião atravessada, meio fora de moda. A reação é instantânea: olhos revirados, um silêncio constrangedor ou até uma correção pública embalada numa superioridade educada. A intenção pode ser legítima – ninguém quer deixar o racismo, o machismo ou qualquer forma de discriminação passar impune. Mas, por trás desse gesto, muitas vezes se esconde outro tipo de segregação, mais sutil: a crença de que a pessoa que expressou aquela opinião já não merece mais consideração.

O filósofo francês Michel de Montaigne, no século XVI, escreveu que “todo homem carrega em si a forma inteira da condição humana.” O que ele queria dizer é que todos nós, sem exceção, somos feitos da mesma matéria: falíveis, contraditórios, aprendendo aos poucos. O preconceito não é só um defeito moral, mas também um estágio na trajetória do pensamento. Condenar alguém apenas pelo que ele pensa hoje é ignorar que a consciência também caminha – e nem sempre na velocidade que gostaríamos.

O preconceito contra o preconceito se manifesta, então, quando tratamos opiniões desatualizadas como se fossem sentenças definitivas sobre quem as carrega. É uma recusa em ver a possibilidade de mudança no outro. O curioso é que essa atitude acaba sendo, ela mesma, uma forma de preconceito – só que travestida de superioridade ética.

Isso não significa que devamos tolerar tudo em nome da empatia. Há ideias que precisam ser confrontadas, principalmente aquelas que negam a dignidade alheia. Mas há uma diferença entre rejeitar a ideia e rejeitar a pessoa. O segredo talvez esteja em fazer o que o psicanalista Donald Winnicott chamava de “sustentação”: manter o espaço aberto para que o outro tenha tempo de crescer, mesmo quando suas ideias nos incomodam.

No fim das contas, o preconceito contra o preconceito talvez seja um reflexo da nossa própria impaciência. Queremos tanto um mundo mais justo que esquecemos que a justiça não se faz só com discursos corretos, mas também com gestos de paciência, tolerância e confiança no tempo. Combater o preconceito sem cair na armadilha da arrogância moral pode ser um caminho mais longo – mas talvez seja o único capaz de levar a algum lugar.


quarta-feira, 19 de junho de 2019

TROCANDO PALAVRAS – RECIPROCANDO III ENSAIOS



ENSAIOS

Michel Eyquem de Montaigne (Nasceu no Castelo de Montaigne, 28 de fevereiro de 1533 — Castelo de Montaigne, 13 de setembro de 1592) foi um jurista, político, filósofo, escritor, cético e humanista francês, considerado como o inventor do ensaio pessoal. Nas suas obras analisou as instituições, as opiniões e os costumes, debruçando-se sobre os dogmas da sua época e tomando a generalidade da humanidade como objeto de estudo. 

Ele criticou a educação livresca e mnemônica, propondo um ensino voltado para a experiência e para a ação. Acreditava que a educação livresca exigiria muito tempo e esforço, o que afastaria os jovens dos assuntos mais urgentes da vida. Para ele, a educação deveria formar indivíduos aptos ao julgamento, ao discernimento moral e à vida prática.

Os seus Ensaios compreendem três volumes (três livros) (levou nove anos para redigir os dois primeiros) e vieram a público em três versões: Os dois primeiros em 1580 e 1588. Na edição de 1588, aparece o terceiro volume. 
Em 1595, publica-se uma edição póstuma destes três livros com novos acrescentos.
Seus Essais são principalmente autorretratos de um homem, mais do que o autorretrato do filósofo. Montaigne apresenta-se-nos em toda a sua complexidade e variedade humanas. Procura também encontrar em si o que é singular. Mas ao fazer esse estudo de auto-observação acabou por observar também o Homem no seu todo. Por isso, não nos é de espantar que neles ocorram reflexões tanto sobre os temas mais clássicos e elevados ao lado de pensamentos sobre a flatulência. Montaigne é assim um livre pensador, um pensador sobre o humano, sobre as suas inconsistências, diversidades e características. E é um pensador que se dedica aos temas que mais lhe apetecem, vai pensando ao sabor dos seus interesses e caprichos.
Se por um lado se interessa sobremaneira pela Antiguidade Clássica, esta não é totalmente passadista ou saudosista. O que lhe interessa nos autores antigos, especialmente os latinos, mas também gregos, é encontrar máximas e reflexões, que o ajudem na sua vida diária e na sua autodescoberta. Montaigne tenta assim compreender-se, através da introspecção, e tenta assim compreender os homens.
Quarto e escritório de Michel de Montaigne
Montaigne não tem um sistema. Não é um moralista, nem um doutrinador. Mas não sendo moralista, não tendo um sistema de conduta, uma moral com princípios rígidos, é um pensador ético. 
Procura indagar o que está certo ou errado na conduta humana. Propõe-se mais estudar pelos seus ensaios certos assuntos do que dar respostas. No fundo, Montaigne está naquele grupo de pensadores que estão a perguntar em vez de responder, e é na sua incerteza em dar respostas, que surge um certo cepticismo em Montaigne. 
Como não está interessado em dar respostas apriorístico tem uma certa reserva em relação a misticismos e crenças. É de notar um certo alheamento em relação ao Cristianismo e às lutas de religião que se viviam em França na época. Embora não deixe de refletir em assuntos como a destruição das Novas Índias pelos espanhóis. Ou seja, as suas reflexões visam os clássicos e a sua própria contemporaneidade. 
Tanto fala de um episódio de Cipião como fala de algum acontecimento do seu século como fala de um qualquer seu episódio doméstico.
O facto de ter introduzido uma outra forma de pensar através de ensaios, fez com que o próprio pensamento humano encontrasse uma forma mais legítima de abordar o real. A verdade absoluta deixa de estar ao alcance do homem, sendo doravante, possível tão-somente uma verdade por aproximações.
Michel de Montaigne foi tio pelo lado materno de Santa Joana de Lestonnac. Wikipédia

Principais obras de Michel de Montaigne:
- Ensaios (1588)
 - Jornal de Viagem 1580 - 1581 (publicado somente em 1774)

Montaigne viveu numa época extremamente conturbada, da qual refletiu algumas características fundamentais, especialmente as mais contraditórias, tais como situar-se no plano econômico, social e político das transformações que levaram a destruição da economia feudal da idade média e sua substituição pelas atividades manufatureiras e de comercio; é a representação pela destruição das formas de pensamento vigentes na idade média e pela transição para estruturas de pensar diametralmente opostas ao teocentrismos medieval; foi o movimento de reforma religiosa, iniciado por Lutero e liderado na França por Calvino; tais características formaram um quadro extremamente rico do ponto de vista intelectual e da sensibilidade: cheio de esperanças risonhas e ao mesmo tempo dominado pelas melancólicas dúvidas.
Todas essas dúvidas aparecem em Montaigne, propondo um enigma difícil de ser decifrado. Seu pensamento vai e vem, dá voltas inesperadas, esconde-se atrás de meias palavras e alusões, não expressa tudo, temendo levantar suspeitas e gerar perseguições. Montaigne retrata a própria vida da consciência: o que pode haver de mais complexo e assistemático?
Contudo, é possível extrair dos Ensaios alguns esquemas básicos e compor um quadro mais ou menos coerente de ideias. Para isso a coordenada intelectual mais evidente que se propõe é ceticismo, do qual Montaigne foi, sem dúvida, o maior representante renascentista.

Eis alguns recortes relativos aos ensaios:

Capitulo II – Da tristeza

Os italianos deram o seu nome a maldade, pois ela é sempre nociva, sempre insensata e também covarde e desprezível: os estoicos a proíbem aos sábios. Há tristezas suscetíveis de se exprimir por lagrimas; outras estão além de qualquer expressão quando somos “petrificados pela dor” (Ovídio), quando as ocorrências nos esmagam nos ultrapassando o que nos é dado suportar, estupidificando a alma a ponto de paralisar qualquer gesto, como acontece quando recebemos de surpresa uma péssima notícia, e em alguns casos sucedem as lagrimas que aliviam a alma e como lhe permitam mover-se mais à vontade: “é com dificuldade que afinal recupera a voz e pode exprimir a sua dor”(Virgílio).
“Quem pode dizer a que ponto arde, arde bem pouco”(Petrarca)

Capitulo III – Dos nossos ódios e afeições

 ...nunca estamos em nós; estamos sempre além. O temor, o desejo, a esperança joga-nos sempre para o futuro, sonegando-nos o sentimento e o exame do que é, para distrair-nos com o que será, embora então já não sejamos mais.
“Todo espirito preocupado com o futuro é infeliz” Sêneca

Capítulo VIII – Da ociosidade

Nas terras ociosas, embora ricas e férteis, pulula ervas selvagens e daninhas, e para aproveita-las cumpre trabalha-las e semeá-las a fim de que nos sejam uteis. Assim igualmente os espíritos: se não os ocupamos com certos assuntos que os absorvam e disciplinem, enveredam ao léu, sem peias, pelo campo da imaginação.
E nesse estado não há loucura nem devaneio que não concebam: “forjando vãs ilusões semelhantes as quimeras de um doente” (Horácio)
“Na ociosidade o espírito se dispersa em mil pensamentos diversos” (Lucano)

Quem influenciou com suas obras e ideias:

- Arthur Schopenhauer – filósofo alemão do século XVIII.
- Blaise Pascal – matemático, físico, teólogo e filósofo francês do século XVII.
- Emil Cioran – filósofo e escritor romeno do século XX.
- John Florio – linguista e tradutor inglês do século XVI e XVII.
- La Mothe Le Vayer – filósofo e historiador francês do século XVII.
- Marie de Gournay – escritora francesa do século XVI.
- Merleau-Ponty – filósofo francês do século XX.
- Nietzsche – filósofo alemão do século XIX.
- René Descartes – matemático, físico e filósofo francês do século XVII.
- Voltaire – filósofo francês iluminista do século XVIII.

Exemplos de frases de Montaigne:

- “A Filosofia é a ciência que nos ensina a viver”.
 - “O silêncio e a modéstia são qualidades muito convenientes para a conversa”.
 - “O verdadeiro espelho de nosso discurso é o curso de nossas vidas”.
 - “Todos vão para outro lugar e em direção ao futuro, ninguém chega a si mesmo”.
 - “A verdadeira liberdade é ser capaz de fazer qualquer coisa sobre si mesmo”.
- "À beira de um precipício só há uma maneira de andar para frente: é dar um passo atrás".

Bibliografia
Montaigne, Michel de, 1533-1592, Ensaios/Michel de Montaigne; tradução de Sérgio Milliet. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987 (Os pensadores)

Site Consultado: https://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_de_Montaigne em 29/04/2019 as 06:19