Há
vontades que não chegam a ser projetos. Elas nascem, inflamam, mas não
amadurecem — como fagulhas que não se tornam incêndio. São desejos provisórios,
caprichos de pensamento que se erguem contra o estado das coisas, mas sem
compromisso com o fôlego longo da mudança. Chamo isso de veleidades
insurgentes: pequenas rebeliões íntimas, muitas vezes mais teatrais do que
práticas, mas que mesmo assim revelam uma fratura no consenso cotidiano.
No
dia a dia, elas aparecem quando alguém promete “virar a mesa” no trabalho, mas
ao fim do expediente já está rindo com os mesmos colegas que critica. Ou quando
um morador indignado com a prefeitura escreve um manifesto nas redes sociais,
mas não comparece à reunião do bairro. São insurgências que se anunciam mais
pelo gesto do que pelo resultado — talvez como ensaio, talvez como alívio.
O
filósofo francês Albert Camus, ao falar do homem revoltado,
lembrava que toda revolta nasce de um “não” — um limite que não se aceita
ultrapassar. No entanto, o “não” das veleidades insurgentes é volúvel: não se
firma como postura, mas como lampejo. Ainda assim, esse lampejo é
significativo. Ele marca a consciência de que algo está errado, mesmo que não
haja energia ou estratégia para corrigir.
É
nesse ponto que Paulo Freire nos oferece um olhar revelador: para ele,
todo ato de conscientização começa com uma percepção incômoda, mesmo que ainda
confusa ou tímida. As veleidades insurgentes, assim, podem ser lidas como os
primeiros sinais de uma consciência em gestação. Não são ainda praxis
transformadora, mas contêm a matéria-prima — o desconforto, a pergunta, a
suspeita — que, se alimentada, pode se tornar ação crítica e libertadora. Onde
o senso comum vê apenas desistência ou imaturidade, Freire veria a oportunidade
de diálogo, de estímulo para que o sujeito passe do impulso à reflexão e,
desta, à ação.
A
força dessas veleidades não está em mudar o mundo diretamente, mas em semear
pequenas fissuras na aceitação do status quo. Uma adolescente que pinta frases
de protesto no caderno escolar, um funcionário que muda o código do sistema
apenas para irritar o chefe, um artista que esconde críticas políticas em suas
obras — todos esses gestos, mesmo efêmeros, indicam que a máquina social nunca
é totalmente lubrificada. Há sempre ruídos, pequenas insurgências sem bandeira
que podem, um dia, se encontrar e formar algo maior.
Talvez
seja por isso que, no plano simbólico, elas não sejam desprezíveis. As
veleidades insurgentes nos lembram que a obediência absoluta é impossível e que
até as vontades mais caprichosas carregam o germe da transformação — mesmo que,
na maioria das vezes, terminem apenas como anedotas pessoais. Afinal, toda
grande revolução começou um dia como um pensamento improvável, quase ridículo,
que poderia muito bem ter sido esquecido.
Se
Camus via na revolta uma exigência de coerência, podemos ver nas veleidades
insurgentes a pré-história dessa coerência: o instante em que se descobre que o
mundo pode — e talvez deva — ser diferente, ainda que o impulso se perca no
vento.