...e a Ilusão de Compreender...
Às
vezes, fico pensando no que realmente significa entender alguma coisa. Não no
sentido de tirar dez numa prova ou repetir um conceito decorado, mas de sentir
por dentro o que se está dizendo. Já aconteceu de você explicar algo e, no meio
da explicação, perceber que só está reproduzindo palavras, como se estivesse
lendo um roteiro que não escreveu? Foi numa dessas reflexões que me lembrei do
experimento mental proposto por John Searle — o famoso Quarto Chinês. A
proposta parece simples, mas o que ela escancara é uma dúvida incômoda: será
que é possível simular compreensão sem que haja nenhuma consciência por trás?
E, pior: será que nós mesmos, em muitos momentos, não funcionamos do mesmo
jeito?
A
experiência do quarto
Imagine
o seguinte: você é trancado num quarto. Do lado de fora, pessoas escrevem
perguntas em chinês e passam essas folhas por baixo da porta. Você, que não
entende uma única palavra de chinês, encontra diante de si três coisas:
- Uma pilha de perguntas em
chinês (que foram entrando).
- Uma pilha de respostas em
chinês (que você deve enviar).
- E um manual em inglês — um
verdadeiro calhamaço — que diz algo como: “Quando você vir este símbolo (x), procure outro
símbolo parecido com esse (y), e então escreva este outro símbolo
(z)
como resposta.”
Você
não entende chinês, mas entende o manual — que funciona como uma grande máquina
de correlacionar símbolos. Ao seguir cuidadosamente as instruções, você devolve
respostas em chinês que fazem todo o sentido para quem está lá fora. Quem lê,
acha que você compreende perfeitamente a língua. Mas por dentro, você só
manipulou formas, sem saber o que elas significavam. Você se tornou, sem
querer, um simulador de compreensão.
Mas
afinal, o que é compreender?
Searle
usa esse cenário para criticar a ideia de que um sistema, apenas por manipular
símbolos (como computadores fazem), possa realmente “entender” algo.
Compreender, para ele, exige mais do que forma — exige intencionalidade,
ou seja, consciência, direcionamento, vivência subjetiva. Seguir instruções e
correlacionar dados pode parecer inteligência, mas talvez seja só uma
coreografia sem alma.
E
aí vem o ponto filosófico que nos cutuca: será que, às vezes, nós também não
vivemos assim? Respondendo a e-mails automaticamente, rindo de piadas sociais
sem achar graça, repetindo frases motivacionais como se fossem receitas? Qual é
o limite entre uma consciência viva e um manual bem seguido?
O
manual invisível da vida
A
sensação de estarmos apenas cumprindo papéis — muitas vezes sem reflexão — é
comum. Há um “manual invisível” social que nos diz como agir: sorria para
agradar, fale sobre o tempo para não gerar tensão, evite silêncios longos.
Podemos passar uma vida inteira respondendo perguntas que nos jogam por debaixo
da porta — de entrevistas de emprego a conversas no elevador — sem jamais saber
de fato o que queremos dizer.
O
Quarto Chinês, nesse sentido, é mais do que uma crítica à inteligência
artificial. É um espelho da nossa própria condição, principalmente quando nos
desconectamos da experiência interior. Quantos relacionamentos são sustentados
por respostas automáticas? Quantas decisões tomamos apenas seguindo um script?
Um
toque de Walter Benjamin
O
pensador alemão Walter Benjamin falava do valor da experiência vivida
frente à repetição mecânica. Para ele, a narração (contar histórias) era
superior à informação fria porque trazia o calor da vivência. Um computador
pode informar. Mas só um ser humano pode narrar com cicatrizes.
Assim,
talvez a verdadeira questão não seja se a máquina entende — mas se nós estamos presentes
no que dizemos. E se compreendemos aquilo que parece vir automaticamente da
nossa boca.
E
se jogássemos fora o manual?
O desafio, então, é abandonar — de vez em quando — o manual. Abrir a porta do quarto. Arriscar-se a dizer algo que não está previsto em nenhum protocolo. Falar errado, mas com alma. Escutar sem pressa. Responder sem copiar. Porque compreender é mais do que acertar a resposta: é habitar o que se diz.
A máquina talvez nunca entenda isso. E nós, às vezes, também não. Mas podemos reaprender. Podemos desobedecer o manual.