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sábado, 5 de abril de 2025

Confidências ao Mar

Numa pescaria me flagrei em profunda meditação. Lancei a linha de pesca no mar, não buscando apenas um peixe — buscando um vestígio de escuta entre mundos. A linha, fina e silenciosa, estendeu-se como um fio místico, conectando minha consciência à vastidão líquida do inconsciente coletivo. É como se o mar, com sua memória abissal, me respondesse sem palavras, apenas com pulsações, correntes e silêncios cheios de sentido. Às vezes, nem preciso lançar nada — basta estar ali, contemplando, e a conversa acontece por dentro, como uma telepatia ancestral entre o humano e o oceano. Talvez a verdadeira pesca não seja de peixes, mas de presenças — e o mar, esse espelho móvel do mundo interior, nos devolve apenas aquilo que temos coragem de escutar.

Algumas conversas só fazem sentido diante do mar. Não porque ele tenha respostas, mas porque sua vastidão absorve tudo sem pressa, sem julgamento. Quem nunca, diante das ondas, murmurou um segredo, um arrependimento ou um desejo quase sem perceber? O mar é um confidente silencioso, um ouvinte cósmico que acolhe sem perguntar nada em troca.

O que nos leva a confiar nossos pensamentos ao mar? Talvez seja sua constância indiferente. Ele está sempre ali, em movimento, e ao mesmo tempo, eterno. Podemos gritar nossos anseios ao vento, e ele os carrega para longe, dissipando angústias como se fossem espuma. Ou podemos sussurrar baixinho, apenas para que a água toque nossos pés e nos lembremos que, apesar de tudo, continuamos de pé.

Nietzsche diria que há algo dionisíaco nesse impulso. O mar nos embriaga com sua dança sem fim, sua música hipnótica. Ele nos lembra que somos parte de algo maior, e que nossos dramas individuais são apenas gotas em sua imensidão. Já Fernando Pessoa, com sua melancolia, talvez nos sugerisse que falar com o mar é dialogar com nosso próprio abismo. O mar não responde, e, no entanto, nos transforma.

Quando a autoestima está em baixa, o movimento incessante das ondas pode inicialmente nos enfadar. Parece que elas zombam da nossa imobilidade, do nosso desânimo. Mas, pouco a pouco, começamos a sentir sua presença de outra forma. O mar não se cansa, não se altera por nossas tristezas; ele segue em seu compasso eterno. E é justamente essa constância que nos acolhe. Aos poucos, nossa energia se ajusta ao ritmo das marés, e a mesma força que parecia irritante começa a renovar algo dentro de nós. Como se, ao aceitar o fluxo do mar, também aprendêssemos a aceitar o nosso próprio.

O mar, porém, também pode ser assustador. Ele exige respeito. Seu tamanho e sua força nos lembram de nossa pequenez e de nossa vulnerabilidade. Mas é nesse respeito que aprendemos algo essencial: a nos respeitarmos e a exigirmos o respeito que merecemos. Quando o respeito se dissolve, tudo se torna incerto e amedrontador, como um mar revolto sem controle. Aprender a reconhecer esses limites é parte do que o mar nos ensina, e, se soubermos escutá-lo, ele nos guia com sua força e sabedoria inabaláveis.

Há algo de paradoxal nessa relação. Buscamos o mar para confidenciar, mas não para obter respostas diretas. Ele nos devolve apenas seu ritmo contínuo, sua brisa carregada de sal e silêncio. E, de alguma forma, isso basta. Talvez seja porque, no fundo, não queremos soluções prontas. Queremos apenas que alguém, ou algo, escute sem nos interromper.

Assim, seguimos voltando ao mar, sempre. Como aqueles que escrevem cartas e nunca as enviam, sabemos que nossas palavras desaparecerão na maré. Mas, ao partilhá-las, algo em nós se torna mais leve. E talvez, só talvez, seja esse o verdadeiro sentido das confidências: não o de serem respondidas, mas o de serem libertadas.


sábado, 15 de fevereiro de 2025

Essencialmente Inescrutável

Sobre o Mistério da Existência

Já reparou como algumas coisas na vida parecem resistir a qualquer tentativa de explicação? É como quando encaramos uma pintura abstrata: você pode até tentar identificar formas ou significados, mas há algo ali que escapa, um resquício de mistério que insiste em permanecer. Essa sensação de que certas coisas são essencialmente inescrutáveis acompanha a humanidade desde os primeiros suspiros da filosofia. Afinal, por que o universo existe em vez de não existir? Ou, ainda mais simples, por que somos incapazes de compreender totalmente aquilo que parece estar bem diante dos nossos olhos?

O Enigma Como Essência

O conceito de "essencialmente inescrutável" carrega em si a ideia de que há uma opacidade intrínseca em tudo que existe. Não se trata de um obstáculo técnico, algo que pode ser superado com mais estudo, mas de um véu fundamental que nunca será levantado. Pense na consciência humana: sabemos que sentimos, pensamos, desejamos, mas explicar plenamente o que é sentir ou ser consciente é um desafio que escapa até mesmo às melhores mentes científicas e filosóficas.

Martin Heidegger, um dos grandes nomes da filosofia existencial, abordou esse mistério em sua famosa questão: "Por que há algo em vez de nada?" Para ele, o "ser" é a maior questão de todas, justamente porque nunca conseguimos escapar do mistério que o envolve. Mesmo quando tentamos defini-lo, ele se retrai, deixando-nos apenas com fragmentos de compreensão.

Situações Cotidianas do Inefável

No dia a dia, o inescrutável se manifesta de formas sutis. Imagine uma conversa entre amigos em que um deles, sem dizer muito, revela uma expressão no olhar que todos entendem, mas ninguém consegue explicar. Ou o momento em que você ouve uma música que mexe profundamente com você, mas quando tenta colocar em palavras o que sentiu, tudo soa vazio, como se o essencial tivesse escapado.

Até mesmo nas pequenas tragédias e alegrias da vida encontramos esse caráter inescrutável. Por que aquele amor não deu certo, mesmo com tudo "funcionando"? Por que aquele momento simples — o cheiro de pão assando, a brisa ao final da tarde — ficou marcado como algo especial? São situações em que a tentativa de racionalizar parece não só inútil, mas quase um desserviço ao próprio mistério.

Filosofia Como Tentativa e Respeito

A filosofia, apesar de muitas vezes ser vista como uma busca por respostas, talvez seja mais sobre a convivência com o mistério. Como bem disse o filósofo brasileiro Vilém Flusser, “pensar é navegar em meio a possibilidades, sem nunca ancorar”. Essa metáfora descreve bem o caráter inescrutável da existência: navegamos, exploramos, mas nunca alcançamos um porto definitivo.

Mas talvez aí esteja a beleza. Se tudo pudesse ser compreendido, explicado e reduzido a fórmulas, o que restaria de fascinante no mundo? A poesia, a arte e até mesmo o amor provavelmente perderiam seu encanto. O mistério nos desafia, mas também nos move, convidando-nos a olhar para além do que é visível e a questionar o que nunca poderá ser plenamente respondido.

Abraçando o Inescrutável

Se há algo a aprender com o essencialmente inescrutável, é que não precisamos compreendê-lo para vivê-lo. Talvez o segredo esteja em aceitar que a vida é, em si mesma, um grande enigma que não precisa ser resolvido, apenas experimentado. Como diria Fernando Pessoa, "Sentir é estar distraído". E talvez, distraídos pelas belezas, angústias e mistérios da existência, estejamos mais próximos de compreender aquilo que, por natureza, nunca será compreensível.


domingo, 5 de janeiro de 2025

Canalhas por Necessidade

Em algum momento da vida, você já cruzou com alguém que justificou suas atitudes reprováveis como resultado das circunstâncias? “Eu precisava fazer isso para sobreviver.” Talvez seja o colega que passou por cima de todos no trabalho para garantir uma promoção, ou aquele amigo que vendeu um segredo por conveniência. Não estamos falando do canalha que age por prazer na maldade, mas daquele que se sente compelido pelas exigências da vida. Esse é o “canalha por necessidade”.

A ideia de ser canalha por necessidade desafia a ética de forma fascinante. Afinal, quando o “necessário” se torna uma justificativa moral? Sartre, em O Existencialismo é um Humanismo, nos lembra que “o homem está condenado a ser livre”. Em outras palavras, mesmo nas circunstâncias mais adversas, somos agentes de nossas escolhas. Para Sartre, usar a necessidade como desculpa é tentar escapar da responsabilidade de existir.

Mas e se olharmos pela lente de Hannah Arendt? Em sua análise sobre o mal banal, ela descreve como as pessoas comuns podem cometer atrocidades apenas por se submeterem à “necessidade” do sistema. Arendt, contudo, alerta que essa normalização da canalhice cotidiana é o que perpetua a destruição de laços humanos fundamentais.

O Cotidiano e a Necessidade

Voltemos aos exemplos diários. Pense no funcionário que aceita manipular dados para manter o emprego. Ele pode até se convencer de que está fazendo isso para sustentar a família. Contudo, ao agir assim, ele reforça uma cultura de desonestidade que prejudica todos. Então, é realmente a necessidade que justifica, ou a falta de coragem para buscar alternativas?

Ou considere um estudante que cola na prova porque não teve tempo de estudar. A pressão é enorme: notas altas são necessárias para o futuro. Mas será que a “necessidade” não esconde a incapacidade de enfrentar as consequências do fracasso?

Um Comentário de Paulo Freire

Paulo Freire, em Pedagogia da Autonomia, fala da importância de uma ética do respeito pelo outro. Ele argumenta que a liberdade sem responsabilidade é vazia. No contexto do canalha por necessidade, Freire talvez perguntasse: “Que tipo de liberdade é essa que sobrevive à custa do próximo?” Para ele, a verdadeira liberdade surge na solidariedade, não na justificação do egoísmo.

O Canalha e a Superação

Embora seja fácil julgar, é preciso lembrar que todos somos passíveis de nos tornarmos canalhas por necessidade. A fome, o medo e a exclusão podem levar qualquer um a escolhas moralmente duvidosas. O desafio ético está em resistir. Gandhi dizia que “há suficiente no mundo para as necessidades de todos, mas não para a ganância de todos”. Assim, talvez a resposta esteja em distinguir o que é realmente necessário do que é conveniente.

Ser canalha por necessidade é um dilema humano e filosófico. Cabe a cada um de nós decidir se a necessidade é desculpa suficiente para comprometer a própria humanidade. Afinal, o que resta de nós quando justificamos o injustificável?