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sexta-feira, 8 de maio de 2020

Identidade Perdida


Estava lendo o livro “Imaginação Educada” do filósofo e teólogo canadense Northrop Frye e me ocorreu falar um pouco de um aspecto que nos é imensamente caro, nossa identidade neste período de recolhimento.

Como todos nós fazemos, começamos olhando para o mundo com nosso intelecto e as nossas emoções.

Ocasionalmente temos uma sensação de identidade com o nosso entorno – o “gosto disso” - , mas a experiência mais frequente é a de nos sentirmos dentro de nós mesmo e isolados desse mundo.

Atualmente vivemos o distanciamento social, ironicamente o distanciamento nos permite observar o plano geral da situação, como a ironia de uma peça teatral quando, por exemplo, sabemos melhor o que está se passando do que os personagens – e assim permite-nos desligar, imaginativamente de um mundo em que preferíamos não estar envolvidos.

A imaginação nos permite pensar um novo mundo, como se estivéssemos vivendo uma experiência nova, começo a pensar como Robison Crusoé: “Sinto-me separado, isolado deste mundo, mas certas vezes me sinto como se ele fosse parte de mim. Espero que eu volte a experimentar essa sensação, e que da próxima vez esta sensação não se esvaia.”

Penso que em geral, somente a imaginação possa nos levar a uma era de ouro, uma era em que andávamos pelo mundo sem medo de um inimigo invisível, e este é um sentimento de identidade perdida.

No mínimo está será nossa impressão e sentimento que irão durar pelo tempo necessário de nos adaptarmos neste novo mundo, pois não será o mesmo mundo e nós não seremos mais os mesmos. 

Um fragmento do pensamento de Heráclito de Éfeso consegue resumir o processo em um parágrafo:

“Nada fica estático, tudo se move, tudo muda. O rio muda a cada segundo, do mesmo modo que a pessoa muda a cada segundo, sendo assim uma mesma pessoa não pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois tanto ela quanto o rio já não são mais os mesmos no instante após o primeiro banho.”



A metáfora do rio se refere ao curso da vida e as mudanças do mundo que habitamos, dissemos, pois, é que o rio existe na condição de processo, a verdade do ser é o devir. E a transposição do devir para o Ser, a função atribuída ao ser pelo eleata é exercida pelo devir, o ser apenas assegura a própria identidade através do devir. 

O tema heraclitiano da luta e harmonia dos contrários: o não-ser é, e o ser não é, resgatam a ideia anteriormente imaginada da identidade supostamente perdida, contrariando a lógica aristotélica de não contradição.

A vida flui como um rio, ela não espera. 
Todo dia ela segue seu fluxo e precisamos nos adaptar a ele. Se não nos adaptamos, ficamos para trás e sofremos com a brutalidade das suas aguas. Aprenda a seguir em frente, enfrentando as adversidades e superando os seus limites.

Fonte:
Frye, Northorp. A imaginação educada. Campinas, SP; Vide Editorial, 2017.

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Filosofia Cínica


A mensagem começa pela pergunta:

De onde vem a necessidade de vencer?

A resposta virá após esta breve história.

Aconteceu:

Alexandre, o Grande, estava indo para a Índia – para vencer, claro -, porque se você não precisa vencer, não vai a lugar nenhum. Por que se preocupar? Atenas era tão bonita, não havia necessidade de fazer uma viagem tão longa. 

No caminho, ele ouviu que um místico, Diógenes, morava na beira de um rio. Ele tinha ouvido muitas histórias sobre esse místico. Naqueles dias, particularmente em Atenas, apenas dois homens eram mencionados – um era Alexandre, o outro era o de Diógenes. Eles eram dois opostos, duas polaridades. Alexandre era imperador, e estava tentando criar um reino que se estendia de uma extremidade a outra da Terra: “O mundo inteiro precisa estar nas minhas mãos.”  Ele era um conquistador, um homem em busca da vitória.


E ali estava Diógenes, o exato oposto. Ele vivia nu e não possuía absolutamente nada. No início tinha uma tigela para beber agua ou as vezes pedir comida. Então um dia ele viu um cão bebendo agua do rio e imediatamente jogou fora a sua tigela. Ele disse: “Se os cães podem viver sem isso, por que não eu? Se os cães são tão inteligentes que podem viver sem uma tigela, devo ser um idiota por levar esta tigela comigo; é um fardo!”

Ele considerou o cachorro seu mestre, e convidou-o para ficar com ele, porque o animal era muito inteligente. Ele não tinha se dado conta de que levar a tigela era um fardo desnecessário. Então, o cão permaneceu com ele. Eles se acostumaram a dormir juntos, a comer juntos. O cão era sua companhia.

Alguém perguntou a Diógenes: “Por que você continua vivendo na companhia de um cão?”

Ele disse: “Ele é mais inteligente do que os chamados seres humanos. Eu não era tão inteligente antes. Olhando para ele, observando-o, fiquei mais alerta. Ele vive no aqui e agora, não se preocupa com nada, não possui nada. E ele está feliz! Sem ter nada, ele tem tudo. Eu ainda não vivo com tamanho contentamento, algum mal-estar permanece interiormente, dentro de mim. Quando eu me tornar como ele, então vou ter alcançado o objetivo.”

Alexandre tinha ouvido falar de Diógenes, de sua felicidade extasiante, do seu silencio, dos seus olhos como de um espelho, assim como um céu azul sem nuvens. E esse homem vivia nu, nem mesmo roupas eram necessárias. Alguém disse: “Ele mora à beira do rio, e estamos passando, não fica muito longe.” Alexandre queria vê-lo, então ele foi.


Era de manhã, uma manhã de inverno, e Diógenes estava tomando seu banho de sol, deitado na areia, nu, desfrutando da manhã, o sol se derramando sobre ele, tudo tão bonito, silencioso, o rio fluindo...

Alexandre pensou: “O que devo dizer? Um homem como Alexandre não podia pensar em outra coisa, a não ser coisas e bens. Então ele olhou para Diógenes, e disse: Eu sou Alexandre, o Grande. Se precisar de algo, me diga. Eu posso ser de muita ajuda e gostaria de ajuda-lo.”

Diógenes riu, e disse: “Eu não preciso de nada. Basta ficar um pouco mais para lá, porque você está bloqueando o sol. Isso é tudo o que você pode fazer por mim. E lembre-se, não bloqueie o sol de ninguém, isso é tudo o que alguém pode fazer. Não fique no meu caminho e nada mais é necessário.”

Alexandre olhou para aquele homem. Ele deve ter se sentido como um mendigo diante dele: “Ele não precisa de nada, e eu preciso do mundo todo, e mesmo assim eu não vou ficar satisfeito, nem mesmo este mundo é suficiente.” 

Alexandre disse: “Estou feliz em vê-lo, nunca vi um homem tão contente.”

Diógenes disse: “Não há problema! Se você quer ser tão contente quanto eu, venha e se deite ao meu lado, tome um banho de sol. Esqueça o futuro e largue o passado. Ninguém está impedindo você.”

Alexandre riu, um riso superficial, é claro, e disse: “Você está certo – mas ainda não é hora. Um dia eu também vou gostar de relaxar como você.”

Diógenes disse: “Esse dia nunca chegara. O que você precisa para relaxar? Se eu, um mendigo, posso relaxar, o que mais é necessário? Por que essa luta, esse esforço, essas guerras, essas conquistas, por que essa necessidade de vencer?”

Alexandre disse: “Quando eu for vitorioso, quando tiver conquistado o mundo inteiro, gostaria de vir e aprender com você e me sentar ao seu lado e me deitar aqui neste banco de areia.”

Diógenes disse: “Mas se eu posso me deitar sobre este banco e relaxar agora, por que esperar o futuro? E por que viajar o mundo inteiro criando sofrimento para si e para os outros – só para vir até mim ao final e relaxar aqui? Eu já estou relaxando.”

      Afinal, qual é a necessidade de vencer? Foi esta a pergunta que iniciamos esta conversa.

A resposta você provavelmente saberá responder, talvez você tenha de provar a si mesmo. Você se sente tão inferior por dentro, você se sem te tão ocioso e vazio. Neste suposto vazio, saiba que você possui um potencial imenso, você não está, de forma alguma, consciente de que já é vitorioso, que a vida já aconteceu a você. Você já é um vencedor e nada mais é possível, tudo de mais importante já aconteceu com você, porem você não reconhece a dadiva da vida, não reconhece a beleza da vida que já lhe aconteceu. Você não conhece o silêncio, a paz, a felicidade, que já estão presentes.

Porque você não está ciente desse reino interior, você sempre sente que algo é necessário, alguma vitória, para provar que você não é um mendigo!

 História:

Para quem não sabe Diógenes de Sinope, em particular, foi referido como o cão, ao ter afirmado que "os outros cães mordem seus inimigos, eu mordo meus amigos para salvá-los.”

O cinismo foi uma corrente filosófica fundada por Antístenes, discípulo de Sócrates e como tal praticada pelos cínicos. Para os cínicos, o propósito da vida era viver na virtude, de acordo com a natureza.

O cinismo se espalhou durante a ascensão do Império Romano no século I quase se tornando um movimento de massa, e assim, os cínicos eram encontrados pedindo e pregando ao longo das cidades do império. A doutrina finalmente desapareceu no final do século V, embora alguns afirmem que o cristianismo primitivo adotou muitas de suas ideias ascéticas e retóricas.

Por volta do século XIX, a ênfase sobre os aspectos negativos da filosofia cínica levou ao entendimento moderno de cinismo a significar uma disposição de descrença na sinceridade ou bondade das motivações e ações humanas e como caraterização de pessoas que desprezam as convenções sociais. Para encorajar as pessoas a renunciarem aos desejos criados pela civilização e convenções, os cínicos empreenderam uma cruzada de escárnio anti-social e assim mostrar as frivolidades da vida social

O cinismo é uma das filosofias mais marcantes de toda a filosofia helenística. O cinismo oferecia às pessoas a possibilidade de felicidade e liberdade do sofrimento em uma época de incertezas. Embora nunca tenha havido uma doutrina cínica oficial, os princípios fundamentais do cinismo podem ser resumidos da seguinte forma:
  1. O objetivo da vida é a eudaimonia (felicidade)e clareza ou lucidez (ἁτυφια) - libertação da τύφος (nebulosidade) que significava ignorância, inconsciência, insensatez e presunção.
  2. A eudaimonia é alcançada ao se viver de acordo com a Physis (a natureza) como entendida pelo Logos do ser humano.
  3. τύφος (a arrogância) é causada por falsos julgamentos de valor, que causam emoções negativas, desejos não naturais e um caráter vicioso.
  4. A eudaimonia ou o desenvolvimento humano, dependem de auto-suficiência (αὐτάρκεια), apatheia, arete, filantropia, paresia e indiferença para com as vicissitudes da vida (ἁδιαφορία).
  5. Evolui-se através de práticas ascéticas (ἄσκησις) que ajudam o indivíduo a tornar-se livre de influências - tais como riqueza, fama ou poder - que não têm valor na natureza. Exemplos incluem Diógenes de Sínope que vivia em um barril e andava descalço no inverno.
  6. Um cínico pratica o descaramento ou a desfaçatez (Αναιδεια) e desfigura o nomos da sociedade; as leis, os costumes e convenções sociais que as pessoas aceitam como o correto.
  7. A sabedoria maior consistia na ação, não apenas no pensar.
Assim, um cínico não tinha bens e rejeitava todos os valores convencionais de dinheiro, fama, poder ou reputação. Viver de acordo com a natureza requer apenas as necessidades básicas para a existência e qualquer um pode tornar-se livre ao libertar-se de todas as necessidades resultadas da convenção.

O modo de vida cínico exigia formação contínua, não apenas no exercício de julgamentos e das impressões mentais, mas também treinamento físico.

Ele costumava afirmar que o treinamento era de dois tipos, mental e corporal: o último dizendo que com o exercício constante, as percepções são formadas, tal como assegura a liberdade para as ações virtuosas; e metade deste treinamento é incompleto sem o outro, boa saúde e força estão entre as coisas essenciais, seja para o corpo ou para a alma. E ele apresentava provas irrefutáveis ​​para mostrar facilmente que com a prática de ginástica chega-se até a virtude. Nos trabalhos manuais e outras artes se pode ver que os artesãos desenvolvem habilidade manual extraordinária através da prática. Mais uma vez, o caso dos tocadores de flauta e dos atletas: que habilidade eles adquirem por sua própria labuta incessante; e, se eles tivessem transferido seus esforços para o treinamento da mente, como em seus trabalhos não teriam sido em vão ou ineficaz.

Nada disso significava que o cínico se afastava da sociedade. Os cínicos viviam sob o olhar público e eram completamente indiferentes em face de qualquer insulto que possam resultar de seu comportamento pouco convencional. Os cínicos dizem ter inventado a ideia do cosmopolita: quando lhe foi perguntado de onde veio, Diógenes respondeu que era "um cidadão do mundo", (kosmopolitês).

O ideal cínico era evangelizar; como o cão de guarda da humanidade, era seu trabalho perseguir as pessoas sobre o erro de suas maneiras. O exemplo de vida do cínico (e o uso da sátira mordaz cínica) expunha as pretensões que se colocam na raiz das convenções cotidianas.

Embora o cinismo concentrou-se exclusivamente em ética, a filosofia cínica, teve um grande impacto no mundo helenístico. Em última análise, tornou-se uma importante influência para o estoicismo. O estoico Apolodoro de Selêucia escrevendo no século II a.C., afirmou que o cinismo é o caminho curto para a virtude.

As frases de Diógenes, o cínico, falam sobre um dos filósofos mais honestos de todos os tempos. Isto é, alguém com uma verdadeira vontade de entender a realidade e chegar à verdade, sem qualquer interesse adicional além do amor pela verdade.

Algumas frases de Diógenes:

“A sabedoria serve como um freio à juventude, de conforto aos idosos, de riqueza aos pobres e de adorno aos ricos”.

O insulto desonra quem o infere, não aquele que o recebe.

É preferível a companhia dos corvos à dos aduladores, pois aqueles devoram os mortos, e estes, os vivos“.

É calando que se aprende a ouvir, escutando que se aprende a falar; então, falando se aprende a calar.

“Entre os animais ferozes, o de mais perigosa mordedura é o delator; entre os animais domésticos, o adulador”.

“Os piores escravos são aqueles que estão servindo constantemente as suas paixões”.

A história conta que um dos cidadãos atenienses, impressionado com o grau de pobreza em que Diógenes vivia, aproximou-se dele e perguntou-lhe: Por que as pessoas dão dinheiro aos mendigos e não aos filósofos?
Diógenes pensou por um momento e então respondeu: “Porque eles pensam que, algum dia, podem se tornar inválidos ou cegos, mas filósofos, nunca”. Uma maneira engenhosa de dizer que a caridade é inspirada por uma espécie de egoísmo, que alimenta, sobretudo, a ajuda inspirada pelo egoísmo. Nessa equação não entram as virtudes, mas as deficiências; não entra a empatia, mas o medo.
Nos tempos de Diógenes, os filósofos eram muito apreciados. Ele poderia ter vivido como um protegido dos nobres, em meio a luxos e privilégios. No entanto, optou por se desapegar de tudo para alcançar o mais alto grau de autenticidade. Por essa razão, é lembrado milhares de anos depois.

Fontes:
Osho, 1931-1990. O barco vazio: reflexões sobre as histórias de Chuang Tzu/- São Paulo: Cultrix. 2012

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