...e ser olhado, vamos falar sobre o desejo de existir aos olhos do outro
Todo
mundo já viveu aquela cena banal e desconcertante: você está andando na rua,
distraído, e de repente percebe que alguém te observa. No instante seguinte,
você também olha de volta. Não há palavra, não há gesto — só a força estranha
do encontro entre dois olhares. E isso basta para dar um pequeno nó na alma:
por que aquele olhar nos prende? Por que é tão difícil desviar? E por que
sentimos, às vezes, a compulsão de também olhar, vigiar, buscar o rosto do
outro?
Esse
ímpeto antigo — olhar e ser olhado — talvez seja um dos impulsos humanos mais
profundos. Ele é anterior à fala, ao gesto, à escrita. Crianças pequenas já
procuram os olhos da mãe antes mesmo de dizer qualquer palavra. Namorados
trocam olhares mais intensos do que frases. Trabalhadores no escritório
observam-se de longe para medir forças ou cumplicidades. Até nas redes sociais,
mesmo sem presença física, queremos “olhares digitais”: curtidas, views,
reações.
No
fundo, não basta existir: queremos que alguém nos veja existir.
O
olhar que define o ser: Sartre e Lacan
Jean-Paul
Sartre foi quem melhor traduziu esse incômodo: no instante
em que o outro me olha, eu deixo de ser puro sujeito e viro objeto na cena
alheia. Estou ali, na vitrine do mundo, exposto ao julgamento. A vergonha, diz
ele, nasce disso: não da nudez em si, mas de saber que há um outro me vendo nu
— seja no corpo, seja nas fraquezas.
Lacan
vai além: no “estádio do espelho”, o bebê se reconhece como eu só porque
vê uma imagem fora de si. Somos essa distância: um sujeito que só se entende
enquanto objeto de visão. O outro nos devolve uma imagem de nós mesmos — e
ficamos para sempre presos a ela. A busca de aprovação, a vaidade, o medo de
errar em público: tudo nasce desse laço invisível entre ver e ser visto.
O
olhar como poder: Nietzsche e Foucault
Nietzsche
nos
lembraria que olhar é disputar força. Quem vê primeiro domina; quem é visto
primeiro revela fraqueza. É uma luta ancestral de predadores e presas — só que
agora nos escritórios, nas salas de aula, nos ônibus lotados. Até o flerte
amoroso é um jogo de quem sustenta mais tempo o olhar sem ceder.
Michel
Foucault estendeu isso à vigilância moderna: hoje o olhar se
espalhou, tornou-se técnica. Câmeras, sistemas, redes sociais monitoram tudo.
Estamos dentro do “panóptico”, prisão imaginada por Bentham, onde o
prisioneiro nunca sabe se está sendo vigiado — e por isso vigia a si mesmo. O
ímpeto de olhar e ser olhado virou método de controle social.
O
olhar e o desejo de ser
Mas
não é só domínio ou medo: é também desejo puro de ser. Roland Barthes
escreveu que o amor começa no instante em que alguém nos olha “de maneira
singular”. Não qualquer olhar, mas aquele que nos vê como únicos, como
ninguém jamais viu. Daí nasce a paixão, o encantamento, o brilho especial de
certos encontros.
Em
tempos de Instagram, TikTok e selfies, esse desejo explodiu em espetáculo. Como
alerta Byung-Chul Han, nunca se exibiu tanto o rosto, o corpo, o
cotidiano — e nunca se foi tão cego para o verdadeiro encontro do olhar real.
Mostrar virou substituir: em vez de ser visto no olhar do outro, queremos ser
exibidos para o mercado das imagens.
O
cotidiano do olhar
No
trabalho, queremos o reconhecimento do chefe, o respeito dos colegas — ou pelo
menos não ser invisíveis. Na amizade, buscamos cumplicidade: um olhar que nos
compreenda sem palavras. No amor, queremos ser lidos por inteiro nos olhos do
outro, como se ali estivesse a prova de que valemos algo.
Na
política, nas ruas, o olhar também pesa: o morador de rua que desvia o olhar
para não ser humilhado; o jovem negro parado pela polícia que sente o peso
mortal do olhar estatal; a mulher que sente olhares invasivos no transporte
público. O olhar é prazer, mas também ameaça.
O
risco de perder o olhar verdadeiro
Byung-Chul
Han
teme que estejamos perdendo o olhar que demora, que escuta, que vê de verdade.
No lugar dele, só resta a vitrine de imagens rápidas, o marketing de si mesmo,
o consumo do outro como coisa. O ímpeto de ser olhado não é mais para existir —
é para ser comprado, curtido, ranqueado.
Mas
Emmanuel Lévinas oferece esperança: para ele, o rosto do outro me
convoca à ética. No olhar do outro há uma súplica: “não me mates”. Ali nasce a
responsabilidade, a humanidade. O olhar autêntico não é controle, mas abertura:
permite o outro ser outro.
Concluindo:
existir é aparecer?
Talvez
a verdade mais incômoda seja esta: não sabemos quem somos sem o olhar alheio.
Todo eu se forma no reflexo de algum espelho humano. Mas isso não nos condena:
nos liberta. Somos relação, não essência isolada. Por isso o ímpeto de olhar e
ser olhado é a nossa mais primitiva oração: "estou aqui, me vê". Não
para dominar, não para vender — mas para ser alguém no mundo compartilhado.
Como
disse Merleau-Ponty: “o mundo é o campo da visão de todos”. Olhar e ser
olhado é só o modo humano de existir nesse campo aberto.