Vamos falar sobre quando o mundo não cabe no mundo
Outro
dia, após uma boa caminhada no fim da tarde, fiquei olhando para uma árvore que
parecia mais cansada do que eu. Seus galhos estavam despenteados pelo vento, e
o sol se punha atrás dela como quem se esconde de vergonha por mais um dia mal
vivido por todos nós. Nessa hora, pensei: o que é essa árvore, afinal? Ela
existe de verdade? Existe só porque a vejo? Ou é apenas um fenômeno da minha
mente? Perguntas assim parecem inúteis quando estamos no corre-corre da vida,
mas são justamente elas que abrem portas para compreendermos o que estamos
fazendo aqui.
Esse
tipo de pergunta é o campo da metafísica — uma tentativa teimosa da filosofia
de ir além do visível, de costurar o real com fios que não se veem. E quando o
mundo parece contraditório, quando a experiência falha em nos dar respostas
firmes, é aí que surgem as soluções metafísicas: modos de explicar o que é a
realidade, como ela se sustenta e qual a nossa relação com ela. Entre elas,
três grandes famílias disputam o direito de dizer o que “é”: o realismo, o
idealismo e o fenomenalismo.
O
realismo: o mundo como resistência
O
realismo aposta todas as fichas na ideia de que o mundo existe
independentemente de nós. Se ninguém estivesse olhando a árvore, ela ainda
assim estaria lá, fazendo sombra e abrigando pássaros. O realismo é quase um
ato de humildade: ele diz que o mundo não precisa da gente para existir. Somos
apenas visitantes, intérpretes de algo que já está pronto.
Essa
visão foi defendida por Aristóteles, que acreditava que as substâncias (como a
árvore, o cavalo ou o ser humano) são reais por si mesmas e possuem uma
existência independente da mente. Para ele, o mundo é composto por essências
que se realizam na matéria. Em sua Metafísica, Aristóteles afirma que a
realidade está nas coisas concretas, e o papel do pensamento é apenas
reconhecer o que já está dado.
O
problema é que, embora o mundo pareça sólido, tudo o que conhecemos sobre ele
chega por meio da percepção. Como saber se essa percepção é confiável?
O
idealismo: o mundo como construção da mente
O
idealismo, ao contrário, diz que o mundo só existe porque há mente que o pensa.
A árvore só é árvore porque há um sujeito que a reconhece como tal. George
Berkeley, filósofo irlandês do século XVIII, resumiu isso com uma frase
provocadora: esse est percipi — ser é ser percebido.
Berkeley
argumentava que os objetos não têm existência independente; eles só existem
enquanto são percebidos por uma mente. E como algumas coisas continuam
existindo mesmo quando ninguém as observa? Ele responde: porque Deus as percebe
continuamente. Ou seja, tudo está sempre na mente — na nossa ou na mente
divina.
O
idealismo alcança sua versão mais robusta em Immanuel Kant, embora ele tente
escapar tanto do realismo quanto do idealismo puro. Kant defende que não
conhecemos as coisas “em si” (noumena), mas apenas os “fenômenos”, isto é, como
elas aparecem para nós conforme as estruturas da nossa mente (espaço, tempo,
causalidade). Assim, embora exista um “mundo lá fora”, só conseguimos acessá-lo
moldado pelas lentes do sujeito.
O
fenomenalismo: o mundo como fenômeno vivido
E
então vem o fenomenalismo, tentando costurar as duas visões. Ele diz: não
precisamos escolher entre um mundo fora e um mundo dentro. O que existe para
nós são fenômenos — o modo como o mundo aparece à consciência. A realidade,
nesse ponto de vista, é aquilo que se manifesta na experiência. Nem objeto nu,
nem mente pura — mas um campo de encontro.
Edmund
Husserl, o pai da fenomenologia, propôs que suspendêssemos o julgamento sobre a
existência das coisas (epoché) e voltássemos a atenção para os modos como elas
nos aparecem. A árvore, nesse olhar, não é nem apenas objeto físico nem
invenção da mente — ela é uma vivência concreta, com cheiro, luz, peso,
presença. Para Husserl, “toda consciência é consciência de algo”, ou seja, não
existe mente sem mundo nem mundo sem mente — ambos surgem juntos, no fenômeno.
Já
Maurice Merleau-Ponty, que dá continuidade a essa linha, insiste na experiência
encarnada: o corpo é o meio pelo qual o mundo se dá. A árvore, então, não é um
conceito abstrato, mas algo que se toca, se cheira, se caminha em volta. Não é
nem um objeto objetivo, nem um devaneio subjetivo: é um acontecimento entre mim
e ela.
Soluções
metafísicas: resposta ou insistência?
As
soluções metafísicas não são exatamente respostas, mas modos de insistir na
pergunta. Nenhuma das três correntes resolve tudo, mas todas abrem trilhas que
nos permitem caminhar melhor com as dúvidas. O realismo nos ancora com
Aristóteles, o idealismo nos provoca com Berkeley e Kant, e o fenomenalismo nos
acorda com Husserl e Merleau-Ponty. Cada um nos convida a enxergar o mundo com
outros olhos — ou a perceber que talvez ver nunca seja apenas ver.
No
fim das contas, talvez não estejamos buscando saber o que é o real, mas o que é
estar no real. A árvore junto a pista de caminhada continua lá — firme, imóvel,
indiferente. Talvez ela exista por si. Talvez só exista quando eu a olho. Ou
talvez exista como parte da história de alguém que também gosta de caminhadas
e, sem querer, encontrou um pedaço de eternidade disfarçado de galho.