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sábado, 7 de junho de 2025

Corrompido de Sentido

Agora vamos fazer uma jornada de reflexão, vamos falar o sobre o esvaziamento do comportamento humano...

Há dias em que as coisas não parecem erradas, mas… tortas. Não é um crime, mas algo parece fora do eixo. Um bom dia que soa automático, um abraço dado sem corpo, uma indignação que parece moda e não sentimento. A gente sente que algo mudou. E mudou mesmo. Não só os hábitos, mas o modo como sentimos e interpretamos esses hábitos. Como se os gestos humanos tivessem sido corrompidos não por maldade, mas por um certo esvaziamento interior. Estamos, aos poucos, sendo corrompidos de sentido.

A corrupção de sentido é mais sutil que a mentira. Ela não grita, não se impõe. Ela vai acontecendo pelas bordas, no excesso de repetição, na transformação do necessário em performance. O comportamento humano, nesse cenário, passa a simular o que antes nascia do íntimo: empatia, cuidado, respeito, verdade.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han observa, em obras como A sociedade do cansaço e A expulsão do outro, que vivemos numa era em que o excesso de positividade e a busca constante por desempenho destroem os vínculos mais humanos. Não há mais espaço para o outro real, com sua lentidão, suas contradições. No lugar disso, surgem comportamentos estéticos, calculados, que imitam a empatia sem senti-la. Sorrir virou protocolo. Escutar virou tempo perdido. Cuidar do outro virou conteúdo para postagem.

A tecnologia, por sua vez, surgiu como extensão da inteligência e da criatividade humana — um instrumento para aliviar tarefas, expandir possibilidades e conectar pessoas. No entanto, quando utilizada sem sabedoria, ela deixa de ser ferramenta e passa a ser modelo. Em vez de servir ao humano, o humano começa a imitá-la. Tornamo-nos eficientes como algoritmos, previsíveis como linhas de código, otimizados como máquinas — e, nesse processo, nossos comportamentos também se automatizam. O gesto perde intenção, o olhar perde pausa, a fala perde silêncio. Como alertou o filósofo Günther Anders, ao refletir sobre a obsolescência do homem, há um risco real de sermos substituídos não pelas máquinas em si, mas pela forma como passamos a viver como elas. A tecnologia não corrompe por si só — mas, quando usada como substituto da relação, da reflexão e da presença, ela acelera a corrosão do sentido humano.

Nietzsche, já no século XIX, alertava sobre o perigo de viver entre máscaras. No Crepúsculo dos Ídolos, ele dizia que "todo hábito torna a mão mais espirituosa, e o espírito mais preguiçoso". Aplicando isso ao comportamento, podemos dizer que repetir gestos sem consciência nos afasta do sentido real das coisas. Tornamo-nos habilidosos em parecer humanos, sem saber mais o que isso significa.

Mas não é só crítica. Também é diagnóstico. Estamos, talvez, num momento de reinvenção do comportamento. Um cansaço profundo das simulações parece se anunciar em vozes novas. A filósofa brasileira Viviane Mosé aponta para a urgência de uma ética sensível, em que o corpo, o afeto e a escuta sejam reconectados à linguagem. Para ela, a palavra só tem força quando está ligada à experiência real. Senão, é ruído.

O desafio, então, não é só individual, mas coletivo. Não basta buscarmos o "ser verdadeiro" como um ideal pessoal — é preciso cultivar espaços onde a verdade possa sobreviver. Onde o abraço não precise ser filmado, onde o silêncio não seja constrangimento, onde o cuidado não precise de like. Onde o comportamento humano recupere, devagar, o seu conteúdo.

Ser corrompido de sentido não é um destino. É uma condição. E condições podem ser enfrentadas.

Talvez o caminho seja pequeno: reaprender o gesto. Reencantar a palavra. Refazer o contato. Não com pressa, mas com presença.

Porque o que está corrompido ainda pode ser restaurado — não com verniz, mas com alma.


quarta-feira, 2 de abril de 2025

Noção de Intencionalidade

Estava distraído, mexendo no celular, quando percebi que alguém me olhava fixamente. Não era um olhar casual, mas algo carregado de sentido. Havia uma intenção ali, mesmo que eu não soubesse qual. Por um instante, senti que aquele olhar me atravessava e me fazia presente no mundo de outra pessoa. Foi então que me veio à mente: o que significa ter uma intencionalidade? Será que todo ato de consciência está direcionado a algo? E mais: será que aquilo que direcionamos a nossa atenção também nos transforma?

A intencionalidade, um conceito central na fenomenologia, foi amplamente explorada por Edmund Husserl, que a definiu como a característica fundamental da consciência: toda consciência é consciência de algo. Ou seja, nunca estamos simplesmente "conscientes", estamos sempre voltados para um objeto, uma ideia, uma sensação. O curioso é que isso não se aplica apenas à percepção, mas também à memória, à imaginação e até aos nossos devaneios. Quando me pego pensando no passado ou sonhando acordado com o futuro, minha mente não está vagando ao acaso; ela está orientada por intenções, por sentidos que dou às coisas.

Mas o que acontece quando não conseguimos nomear aquilo para o qual estamos direcionados? Muitas vezes sentimos um incômodo, um desconforto inexplicável, uma angústia vaga que parece estar "mirando" algo, mas sem que consigamos identificar o alvo. Aí entra um aspecto fascinante da intencionalidade: ela pode ser tão consciente quanto inconsciente. Freud, por exemplo, mostrou como certas intenções reprimidas se manifestam de forma indireta em sonhos, lapsos e atos falhos.

Além disso, a intencionalidade não é unilateral. Se olho para uma paisagem e ela me desperta uma emoção, posso dizer que minha consciência intencionalmente se dirigiu à paisagem. Mas e se a paisagem também "me olha de volta"? Não no sentido literal, claro, mas no sentido de que certas experiências parecem nos interpelar, como se exigissem algo de nós. Sartre explorou essa dimensão da intencionalidade ao afirmar que o olhar do outro nos constitui: não sou apenas aquele que olha, mas também aquele que é olhado e, portanto, reconhecido e transformado.

A intencionalidade também tem um lado prático. No cotidiano, a forma como direcionamos nossa atenção define o que percebemos como relevante ou irrelevante. Se ando pela rua absorto em meus pensamentos, não noto as pequenas interações ao meu redor. Se, ao contrário, estou atento, percebo os gestos, os olhares, os detalhes que dão cor à vida. Nesse sentido, a intencionalidade é um filtro, um mecanismo que seleciona e organiza nossa experiência do mundo.

Podemos, então, dizer que viver é um constante exercício de intencionalidade. Escolhemos a que (ou a quem) damos atenção, e isso define, em grande parte, nossa existência. Mas será que temos total controle sobre isso? Ou será que também somos arrastados por intenções que não escolhemos? Aqui, a filosofia nos convida a refletir: talvez a verdadeira liberdade não esteja em ter controle absoluto sobre nossas intenções, mas em reconhecer que somos, ao mesmo tempo, agentes e receptores de intenções, navegando entre aquilo que escolhemos e aquilo que nos escolhe.

Afinal, quem nunca sentiu que um olhar, uma palavra ou até um pensamento inesperado mudou o rumo de sua consciência? Talvez a intencionalidade não seja apenas um traço da consciência, mas um fio invisível que nos liga ao mundo, entre o que queremos ver e o que se impõe à nossa visão.