Ele é aquilo que não é: o modelo estereotipado da escravidão
Tem
gente que, ao ouvir a palavra "escravidão", pensa logo em imagens já
gastas: correntes, senzalas, navios negreiros. Parece que o sofrimento precisa
ter uma estética para ser reconhecido. O estereótipo da escravidão se
cristalizou como uma fantasia dolorosa, mas controlável — algo que se pode
arquivar como passado e lamentar à distância. E é aí que mora o perigo. Porque
o estereotipado da escravidão é, muitas vezes, aquilo que ela já não é. E, ao
mesmo tempo, é aquilo que ela ainda é — mas disfarçada, dissimulada,
invisibilizada pelo próprio clichê.
O
estereótipo torna a escravidão um "personagem": o corpo negro suado,
o chicote, o senhor cruel. Tudo isso existiu, sim, e é importante lembrar. Mas
quando só isso é lembrado, o estereótipo cumpre a função traiçoeira de
apagar as novas formas de cativeiro. Porque se não há grilhões visíveis, não
parece haver prisão. Se a pessoa recebe salário, então não está escravizada. Se
tem celular, então está livre. Mas o que acontece quando alguém trabalha 15
horas por dia numa oficina, come e dorme no mesmo espaço insalubre, sem
contrato, sem futuro? O estereótipo diz: “isso não é escravidão”. E nós, muitas
vezes, acreditamos.
O
filósofo Jean Baudrillard dizia que a simulação pode substituir o real —
uma imagem pode ser mais real que a própria realidade, e acabar matando o que
ela representa. O estereótipo da escravidão é isso: uma imagem tão forte, tão
teatral, que rouba o lugar da experiência real de quem vive em cativeiro hoje,
em outras formas. Ele impede o olhar, adormece a sensibilidade, padroniza o
sentir.
E
há mais: o estereótipo transforma o escravizado em um “outro” tão distante, que
se torna quase irreal. Como se fosse uma figura de museu. Como se não estivesse
no motoboy exausto, na empregada que dorme na casa dos patrões e tem a vida
inteira atravessada pelo “favor”, ou no garoto que vende bala no sinal desde os
seis anos de idade. O estereótipo desumaniza — ainda que em tom piedoso.
Assim,
o estereotipado da escravidão é aquilo que não é, porque simula um passado
encerrado, fecha a porta da reflexão e nos impede de perceber a continuidade
perversa de um sistema que se atualiza. É como se a escravidão tivesse sido
“resolvida” porque agora ela aparece com outra roupa. Mas ela está ali —
justamente onde o olhar viciado pelo clichê se recusa a ver.
A
libertação, nesse cenário, não é só uma questão jurídica ou política. É também
simbólica e filosófica. Passa por desconstruir a imagem fácil e confortável que
fazemos da escravidão e abrir os olhos para suas presenças sutis. O trabalho da
filosofia, aqui, é o de rasgar o véu da repetição, fazer perguntas incômodas,
desconfiar das imagens prontas.
Milton
Santos, em sua crítica à globalização, falava de uma "globalização
perversa", onde a técnica e o capital organizam o mundo de modo que a
liberdade se torne um privilégio, e não um direito. Em suas palavras, “a
perversidade do sistema se realiza ao fazer parecer que todos participam,
quando muitos estão, na verdade, aprisionados.” Ora, isso nos leva diretamente
ao coração do nosso tema: o estereótipo da escravidão como ilusão de distância
— e a nova escravidão como invisível justamente por parecer "inclusiva".
Pensemos
num exemplo: a jovem que trabalha num aplicativo de
entrega. Ela “tem liberdade” de escolher seu horário, não tem patrão visível,
carrega um celular caro no bolso. Mas é forçada a trabalhar 12, 14 horas por
dia para conseguir sobreviver, não tem direitos trabalhistas, se acidenta e
ninguém responde. Ela é livre? Ou está presa a um sistema que a utiliza como
peça descartável? Ela é o que o estereótipo não reconhece: a escravizada do
algoritmo.
Outro
caso: o trabalhador rural em áreas remotas, que “aceita”
viver em alojamentos degradantes, com alimentação insuficiente, endividado com
o próprio patrão — uma dívida que nunca termina. A Justiça do Trabalho já
reconheceu milhares de casos de “trabalho análogo ao de escravo” no Brasil nos
últimos anos. Mas como não há pelourinho, muitos se recusam a chamar pelo nome
certo. O estereótipo venceu. Ele nos ensinou a ver só o passado.
E
não para por aí. Há uma escravidão doméstica, muitas vezes
travestida de “ajuda”. A empregada que cuida dos filhos, limpa a casa, cozinha,
vive décadas com a mesma família — mas sem carteira assinada, sem
independência, sem vida própria. Ela é tratada como “parte da família”, dizem.
Mas família que não dá férias, salário justo ou aposentadoria? A linguagem do
afeto esconde a lógica da servidão.
Milton
Santos nos ajuda a ver que a liberdade é desigualmente distribuída — e que a
aparência de escolha pode mascarar sistemas profundos de exclusão. A escravidão
moderna não se impõe com correntes, mas com contratos precários, algoritmos,
dívidas e dependência emocional. E, acima de tudo, com uma ideia formatada do
que a escravidão “deveria parecer” — para que o resto possa continuar existindo
sem nome.
É
preciso, então, lutar contra o que parece, e ouvir o que é. A
filosofia aqui precisa ser um ato de audição — de escutar os silêncios, os
não-ditos, os murmúrios de uma realidade abafada por imagens repetidas.
Libertar-se da escravidão passa também por libertar o olhar. Ver com outros
olhos. Olhos que enxergam o que o estereótipo não quer mostrar.
Porque,
no fim, o estereotipado da escravidão é o fantasma confortável que a sociedade
inventou para não ver seus próprios monstros reais. E enquanto não olharmos de
frente os novos grilhões, continuaremos fingindo que somos livres — enquanto
seguimos presos, somos os neoescravos!
Como
escreveu Clarice Lispector:
“Liberdade
é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”
E
talvez ainda nem forma. Mas exige olhos novos para ser vista.
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