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segunda-feira, 28 de julho de 2025

Estereótipo de Escravidão

Ele é aquilo que não é: o modelo estereotipado da escravidão

 

Tem gente que, ao ouvir a palavra "escravidão", pensa logo em imagens já gastas: correntes, senzalas, navios negreiros. Parece que o sofrimento precisa ter uma estética para ser reconhecido. O estereótipo da escravidão se cristalizou como uma fantasia dolorosa, mas controlável — algo que se pode arquivar como passado e lamentar à distância. E é aí que mora o perigo. Porque o estereotipado da escravidão é, muitas vezes, aquilo que ela já não é. E, ao mesmo tempo, é aquilo que ela ainda é — mas disfarçada, dissimulada, invisibilizada pelo próprio clichê.

O estereótipo torna a escravidão um "personagem": o corpo negro suado, o chicote, o senhor cruel. Tudo isso existiu, sim, e é importante lembrar. Mas quando só isso é lembrado, o estereótipo cumpre a função traiçoeira de apagar as novas formas de cativeiro. Porque se não há grilhões visíveis, não parece haver prisão. Se a pessoa recebe salário, então não está escravizada. Se tem celular, então está livre. Mas o que acontece quando alguém trabalha 15 horas por dia numa oficina, come e dorme no mesmo espaço insalubre, sem contrato, sem futuro? O estereótipo diz: “isso não é escravidão”. E nós, muitas vezes, acreditamos.

O filósofo Jean Baudrillard dizia que a simulação pode substituir o real — uma imagem pode ser mais real que a própria realidade, e acabar matando o que ela representa. O estereótipo da escravidão é isso: uma imagem tão forte, tão teatral, que rouba o lugar da experiência real de quem vive em cativeiro hoje, em outras formas. Ele impede o olhar, adormece a sensibilidade, padroniza o sentir.

E há mais: o estereótipo transforma o escravizado em um “outro” tão distante, que se torna quase irreal. Como se fosse uma figura de museu. Como se não estivesse no motoboy exausto, na empregada que dorme na casa dos patrões e tem a vida inteira atravessada pelo “favor”, ou no garoto que vende bala no sinal desde os seis anos de idade. O estereótipo desumaniza — ainda que em tom piedoso.

Assim, o estereotipado da escravidão é aquilo que não é, porque simula um passado encerrado, fecha a porta da reflexão e nos impede de perceber a continuidade perversa de um sistema que se atualiza. É como se a escravidão tivesse sido “resolvida” porque agora ela aparece com outra roupa. Mas ela está ali — justamente onde o olhar viciado pelo clichê se recusa a ver.

A libertação, nesse cenário, não é só uma questão jurídica ou política. É também simbólica e filosófica. Passa por desconstruir a imagem fácil e confortável que fazemos da escravidão e abrir os olhos para suas presenças sutis. O trabalho da filosofia, aqui, é o de rasgar o véu da repetição, fazer perguntas incômodas, desconfiar das imagens prontas.

Milton Santos, em sua crítica à globalização, falava de uma "globalização perversa", onde a técnica e o capital organizam o mundo de modo que a liberdade se torne um privilégio, e não um direito. Em suas palavras, “a perversidade do sistema se realiza ao fazer parecer que todos participam, quando muitos estão, na verdade, aprisionados.” Ora, isso nos leva diretamente ao coração do nosso tema: o estereótipo da escravidão como ilusão de distância — e a nova escravidão como invisível justamente por parecer "inclusiva".

Pensemos num exemplo: a jovem que trabalha num aplicativo de entrega. Ela “tem liberdade” de escolher seu horário, não tem patrão visível, carrega um celular caro no bolso. Mas é forçada a trabalhar 12, 14 horas por dia para conseguir sobreviver, não tem direitos trabalhistas, se acidenta e ninguém responde. Ela é livre? Ou está presa a um sistema que a utiliza como peça descartável? Ela é o que o estereótipo não reconhece: a escravizada do algoritmo.

Outro caso: o trabalhador rural em áreas remotas, que “aceita” viver em alojamentos degradantes, com alimentação insuficiente, endividado com o próprio patrão — uma dívida que nunca termina. A Justiça do Trabalho já reconheceu milhares de casos de “trabalho análogo ao de escravo” no Brasil nos últimos anos. Mas como não há pelourinho, muitos se recusam a chamar pelo nome certo. O estereótipo venceu. Ele nos ensinou a ver só o passado.

E não para por aí. Há uma escravidão doméstica, muitas vezes travestida de “ajuda”. A empregada que cuida dos filhos, limpa a casa, cozinha, vive décadas com a mesma família — mas sem carteira assinada, sem independência, sem vida própria. Ela é tratada como “parte da família”, dizem. Mas família que não dá férias, salário justo ou aposentadoria? A linguagem do afeto esconde a lógica da servidão.

Milton Santos nos ajuda a ver que a liberdade é desigualmente distribuída — e que a aparência de escolha pode mascarar sistemas profundos de exclusão. A escravidão moderna não se impõe com correntes, mas com contratos precários, algoritmos, dívidas e dependência emocional. E, acima de tudo, com uma ideia formatada do que a escravidão “deveria parecer” — para que o resto possa continuar existindo sem nome.

É preciso, então, lutar contra o que parece, e ouvir o que é. A filosofia aqui precisa ser um ato de audição — de escutar os silêncios, os não-ditos, os murmúrios de uma realidade abafada por imagens repetidas. Libertar-se da escravidão passa também por libertar o olhar. Ver com outros olhos. Olhos que enxergam o que o estereótipo não quer mostrar.

Porque, no fim, o estereotipado da escravidão é o fantasma confortável que a sociedade inventou para não ver seus próprios monstros reais. E enquanto não olharmos de frente os novos grilhões, continuaremos fingindo que somos livres — enquanto seguimos presos, somos os neoescravos!

Como escreveu Clarice Lispector:

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”

E talvez ainda nem forma. Mas exige olhos novos para ser vista.


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