Estava pensando, falando cá com meus botões, e se a nossa memória não fosse confiável? Seria o caso das falhas da lembrança e a construção da realidade?
Outro
dia, meu filho contou uma história da infância com riqueza de detalhes: nós
dois brincando na sala de casa, uma bronca que levamos por termos derrubado café sobre o
tapete. Eu, sinceramente, não lembrava de nada disso. E mais: achava que eu nem
estava presente naquela ocasião. Ficamos os dois convencidos de que nossa
versão era a correta — e, ironicamente, ambos estávamos certos... e errados.
A
questão é que a memória não é um espelho do passado, e sim uma reconstrução
narrativa, como já sugeria o filósofo francês Henri Bergson. Em sua obra
Matéria e Memória (1896), ele argumenta que lembrar não é simplesmente
armazenar e recuperar dados, mas sim reinterpretar o passado à luz do presente.
Cada lembrança, portanto, não é uma cópia, mas uma reinvenção.
Essa
ideia foi posteriormente reforçada pelas ciências cognitivas. Elizabeth Loftus,
psicóloga cognitiva e pesquisadora da Universidade da Califórnia, demonstrou
com inúmeros experimentos que memórias falsas podem ser implantadas com
facilidade. Em um de seus estudos clássicos, participantes foram convencidos de
que haviam se perdido em um shopping quando crianças — e muitos não apenas
acreditaram, como acrescentaram detalhes fictícios à lembrança. Isso colocou em
xeque a validade dos testemunhos oculares e mostrou como somos mais vulneráveis
à manipulação do que gostaríamos de admitir.
E
não é só sobre manipulação externa. O próprio cérebro preenche lacunas quando
precisa. Como observou Oliver Sacks, neurologista e escritor, em O Homem que
Confundiu Sua Mulher com um Chapéu, pessoas com lesões neurológicas criam
versões alternativas da realidade com base em memórias fragmentadas. Essas
versões são, para elas, tão reais quanto qualquer outra.
Nosso
cotidiano está repleto de exemplos mais sutis. Um casal que discorda sobre o
tom de uma conversa; irmãos que lembram diferentes versões da mesma viagem; o
funcionário que acha ter sido injustiçado por um chefe que sequer se recorda do
episódio. A memória, muitas vezes, não guarda fatos — ela guarda emoções
associadas a fatos. E isso muda tudo.
O
filósofo britânico Bertrand Russell advertia que “a lembrança é sempre, em
certa medida, um ato de criação.” Já Friedrich Nietzsche foi além: em A
Genealogia da Moral, ele sugere que a memória é moldada pela necessidade social
— aprendemos a lembrar da dor para obedecer, lembrar da culpa para sermos
domesticados. Ou seja, nem sempre lembramos por vontade própria: muitas vezes
lembramos porque fomos ensinados a lembrar de certos eventos e não de outros.
Do
ponto de vista neurocientífico, sabe-se hoje que cada vez que acessamos uma
lembrança, ela é regravada no cérebro — um processo chamado reconsolidação.
Isso significa que lembrar é também alterar. Como uma foto que vai perdendo
qualidade a cada cópia, a memória se degrada e se adapta. Nossos neurônios,
longe de serem arquivos estáticos, são mais como um sistema de edição contínua.
Isso
nos leva a um dilema curioso: se a nossa memória é fluida, o que isso diz sobre
a nossa identidade? Somos, em parte, o que lembramos — nossas escolhas,
arrependimentos, alegrias e medos. Mas se nossas lembranças mudam, quem somos
nós realmente?
Talvez
a resposta esteja na aceitação da memória como narrativa. Como uma história
contada por alguém que se reconstrói com o tempo. E isso não precisa ser visto
como um problema. A memória criativa é também uma memória que cura, que
reinterpreta o sofrimento, que permite recontar a própria vida com um novo
significado.
No
fundo, a memória não busca a verdade literal — ela busca sentido. E, como
escreveu Clarice Lispector: “o que me salva é o saber que, mesmo quando erro,
estou tentando acertar o caminho do que me importa”. Lembrar é, muitas vezes,
isso: tentar acertar o caminho do que importa.