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sexta-feira, 23 de maio de 2025

Fédon

 

A arte de morrer, a urgência de viver!

Li algumas vezes a obra Fédon, escrita por Platão, é um dos mais importantes diálogos filosóficos da tradição ocidental. Ambientada nas últimas horas de vida de Sócrates, a narrativa apresenta uma profunda reflexão sobre a morte, a imortalidade da alma e o verdadeiro papel da filosofia. Embora estruturado como um diálogo entre Sócrates e seus discípulos, o texto possui uma densidade argumentativa que o aproxima de um tratado filosófico, com momentos dramáticos e emocionais que ressaltam a serenidade do filósofo diante da morte. Considerado parte do chamado período médio da obra platônica, o Fédon combina razão e mito para apresentar uma visão espiritualizada da existência, desafiando o leitor a pensar sobre o valor da alma e a preparação para uma vida justa e reflexiva.

A história é conhecida: Sócrates está prestes a morrer. Reunido com seus amigos, não lamenta, não se revolta, não clama por clemência. Fala. Pergunta. Responde. Ensina. E bebe a cicuta com uma tranquilidade que faria corar até o mais convicto estoico. É neste cenário que se desenrola o diálogo Fédon, de Platão, talvez um dos textos mais belos já escritos sobre a morte — e, paradoxalmente, sobre a vida.

Mas há algo curioso logo de início: Platão, o autor, não estava presente nesse momento. Fédon nos conta que ele estava doente. A ausência do discípulo mais fiel na hora da morte do mestre pode parecer estranha. Mas talvez seja exatamente isso que a filosofia faz: transforma a ausência em presença pela linguagem. Platão não precisa estar na cena para que a cena nos alcance.

I. O suicídio e a confiança na ordem do mundo

Logo no início do diálogo, um tema delicado é tratado com coragem: o suicídio. Sócrates, que está por morrer, diz que o homem não deve tirar a própria vida. Mesmo desejando se libertar do corpo para alcançar o verdadeiro saber, não é legítimo antecipar essa separação.

Por quê?

Porque, diz ele, nós pertencemos aos deuses. Estamos aqui como guardiões de algo que não nos pertence inteiramente. Matar-se seria como abandonar um posto sem permissão. É uma visão que mistura religião, ética e política espiritual: não somos donos da nossa vida — somos seus cuidadores temporários.

Hoje, quando o tema do suicídio é abordado por psiquiatras, terapeutas e familiares com extremo cuidado, vale revisitar esse ponto filosófico: será que pensar que a vida tem um propósito maior ajuda a suportar a dor de estar vivo? Sócrates parece dizer que sim — mas não com uma resposta dogmática, e sim com uma postura de confiança no mistério do mundo.

II. A alma que sobrevive ao corpo

O grande tema do Fédon é a imortalidade da alma. Sócrates tenta provar que a alma não morre com o corpo — ou pelo menos, que há fortes razões para crer nisso. Os argumentos são variados e sofisticados, mas o que mais chama atenção não é a lógica, e sim a serenidade com que ele fala do que vem depois.

Se a alma existia antes do corpo, e se aprender é lembrar (como Sócrates defende no argumento da reminiscência), então talvez a morte não seja um fim, mas um retorno.

Sócrates não afirma tudo isso como dogma. Ele investiga. Ele convida seus amigos a pensar com ele. E talvez aqui esteja o ponto central: a crença na imortalidade da alma não precisa ser certeza — basta que ela inspire uma vida melhor.

No fim das contas, mesmo que a alma não seja imortal, uma vida guiada por essa ideia pode ser mais digna do que uma vivida como se tudo acabasse aqui.

III. A separação entre corpo e alma: um alerta para o presente

Sócrates acredita que o corpo atrapalha a alma. O corpo sente dor, prazer, sono, fome, medo — e essas sensações confundem, distraem, enganam. Por isso, o filósofo verdadeiro tenta se afastar das ilusões corporais para cuidar da alma.

Hoje, em um mundo saturado por estímulos — telas, sons, compras, selfies — talvez essa ideia soe mais atual do que nunca. Vivemos uma vida do lado de fora, enquanto a alma espera, esquecida, no fundo da mente.

Cuidar da alma, hoje, não é desprezar o corpo, mas talvez seja aprender a ouvir o que em nós não grita. A parte que não aparece na vitrine. A parte que se alimenta de silêncio, de verdade, de beleza.

IV. Filosofar é ensaiar a morte

“Os que praticam verdadeiramente a filosofia estão se preparando para morrer.” — diz Sócrates.

Mas não se trata de desejar a morte. Trata-se de morrer antes da morte: morrer para o ego, para o orgulho, para as falsas necessidades. Filosofar, nesse sentido, é desapegar-se do que é passageiro para viver em sintonia com o que é eterno.

Hoje, vivemos como se nunca fôssemos morrer. Corremos atrás de metas, acúmulos, títulos, curtidas. E quando a morte aparece, parece um acidente. Sócrates propõe o contrário: colocar a morte no centro da vida. Não para temê-la, mas para que tudo o que fizermos tenha peso, beleza e verdade.

V. A ausência como presença

E então, chega o fim. Sócrates bebe a cicuta. A respiração enfraquece. Os olhos se apagam. E ele diz:

“Critão, devemos um galo a Asclépio. Não se esqueça de pagar a dívida.”

Asclépio era o deus da cura. O que Sócrates quer dizer?

Talvez que a morte foi, para ele, uma cura. Não do corpo, mas da alma — ou do exílio da alma no corpo. Uma libertação final.

E aqui, a ausência de Platão se transforma: ele não estava no momento da morte, mas fez da morte uma lição para todos os tempos. Porque escrever é isso: inscrever a ausência no tempo.

Epílogo: e nós?

O Fédon não nos pede fé cega. Não exige conversão. Mas nos desafia a viver como se a alma importasse mais que o corpo. Como se a verdade valesse mais que a aparência. Como se viver fosse mais do que durar.

Talvez essa seja a verdadeira imortalidade: viver de tal forma que, mesmo depois da morte, continuemos vivos nas ideias, nas escolhas e nos olhos daqueles que olham para o mundo com mais profundidade — como os amigos de Sócrates olharam para ele naquele último dia.

domingo, 4 de maio de 2025

O Barco Vazio

Quando o Eu se Dissolve no Impacto

Há livros que tocam a mente, outros que tocam o coração. Mas O Barco Vazio, de Osho, é daquele tipo raro que desarma o eu. Não nos toca. Nos desfaz.

O título vem de uma parábola do mestre zen Chuang Tzu: um homem está remando seu barco num rio quando vê outro barco vindo em sua direção. Ele grita, avisa, se irrita, mas o barco continua vindo, até colidir com o seu. Ele se enche de raiva, até perceber que o barco está vazio. De repente, não há contra quem descarregar a fúria. A raiva desaparece. O barco era apenas... um barco.

Osho extrai dessa imagem um ensinamento radical: somos como barcos cheios de ego, colidindo uns com os outros, acreditando que há um "outro" ali, quando na verdade, o que nos fere não é o outro, mas o conteúdo que colocamos dentro de nós mesmos.

A novidade de um barco sem capitão

Pensei cá comigo: Inovar filosoficamente neste livro é aceitar seu convite à despersonalização — não como alienação, mas como clareza. Osho nos oferece uma filosofia do não-eu, tão antiga quanto o zen, mas revestida de uma psicologia contemporânea: o ego é uma construção contínua e histérica. É como uma criança tentando ser adulta antes da hora, vestindo roupas largas e imitando os gestos dos pais.

O barco vazio é a presença radical da ausência. Ele nos ensina que o verdadeiro poder está no não resistir, no não se afirmar a todo custo. Na sociedade contemporânea, onde o “branding pessoal” é quase uma religião, e onde cada um quer deixar sua marca (como se o mundo fosse uma areia movediça pronta a nos esquecer), Osho propõe a dissolução: e se ao invés de marcar, a gente se abrisse?

O silêncio como revolução

Diferente de um estoicismo que suporta a dor com elegância, ou de um existencialismo que encara o absurdo com coragem, Osho propõe o esvaziamento como forma de sabedoria. A meditação não é uma técnica, mas uma escuta. E o vazio, longe de ser carência, é potência silenciosa.

Num mundo em que o ruído é constante — seja nos debates nas redes sociais, nas buzinas do trânsito, ou nas vozes internas que nos comparam e cobram — ser um barco vazio é um ato subversivo. Quem não se enche de identidades não pode ser manipulado por elas.

A colisão como despertar

O barco vazio também sugere que é na colisão que acordamos. Só percebemos que o outro era “vazio” quando colidimos com ele. Assim, os conflitos que vivemos — com o parceiro, com o chefe, com a própria vida — são oportunidades de perceber o quanto da nossa reação é pura projeção. Projetamos um inimigo onde só havia madeira e correnteza.

E talvez esse seja o ponto mais inovador: não se trata de buscar um “eu verdadeiro”, mas de perceber que o próprio “eu” é uma ilusão sustentada pelo medo da ausência. Osho não quer que você se encontre, mas que se perca, no melhor dos sentidos.

O barco como metáfora viva

No fim das contas, o barco vazio não é uma ideia para se entender, mas uma metáfora para se viver. É uma atitude de leveza diante da vida, uma espécie de dança com o acaso sem o peso de querer controlar tudo. É estar tão presente que já não há “alguém” ali — apenas consciência.

Como escreveu Osho: “Torne-se um barco vazio. Então ninguém poderá feri-lo. E ninguém poderá lhe causar dano. E você poderá navegar serenamente pelo rio da vida.”

Pergunta: E você? Está disposto a deixar seu barco à deriva, não por descontrole, mas por confiança?


Desaparecimento Cósmico

Estava parado na fila da escada rolante, olhando a esteira rolante como quem observa o tempo passando — lenta, inexorável, levando as pessoas embora. Um após o outro iam sumindo no topo da escada, uma dúvida existencial: por que algumas presenças somem como se nunca tivessem existido? Não falo da morte no seu formato mais protocolar, com certidão e cerimônia. Falo do desaparecimento sem anúncio. Pessoas que um dia estavam ali, e no outro dia já não estão mais. E ninguém sabe o que foi feito delas.

Vivemos como quem chegou no meio do filme. A história já começou e não sabemos o que houve antes; também não temos certeza se veremos os créditos finais. “De onde eu vim?” parece uma pergunta de criança — mas talvez a verdadeira maturidade comece quando essa pergunta volta a fazer sentido. E mais ainda: “Pra onde foi quem se foi?”.

A fonte e o fim, nesse enigma, são como irmãos gêmeos que nunca se encontram. Porque o fim não é só o apagar das luzes; às vezes é um silêncio que se prolonga. Um nome que para de ser dito. Um rosto que a memória começa a confundir com outro. É como se, em certo momento, alguém saísse discretamente da festa da vida pela porta dos fundos — e ninguém percebesse.

Mas talvez estejamos lendo a vida de forma linear demais. Nyanaponika Thera, monge e pensador budista, nos lembra que o tempo e o eu são construções passageiras, como redemoinhos num rio. Nada realmente "começa" ou "termina", apenas muda de forma. Aquilo que acreditamos perdido talvez apenas esteja passando por um ciclo invisível ao nosso olhar impaciente.

Nesse sentido, o desaparecimento não seria um fim, mas um retorno. Não um corte, mas um círculo. A vida como mandala: começa onde termina, termina onde começa. A fonte e o destino se tocam como as pontas de uma serpente que morde a própria cauda. Quem se vai não está ausente, apenas se movimenta por outra curva da roda. E quem permanece, caminha no mesmo giro, talvez mais devagar.

O mais curioso é que quem vai, vai inteiro. Quem fica, fica em pedaços. A ausência esculpe em nós uma presença negativa: um espaço que continua ali, exigindo sentido. Como se a jornada daqueles que desapareceram tivesse se encerrado num ponto que é, ao mesmo tempo, início e destino. A origem que nunca soubemos definir. O ponto zero. O nada que parece dizer: “siga, é por aqui”.

Nietzsche escreveu que “o homem é uma corda estendida entre o animal e o além-do-homem”. Talvez sejamos isso: uma ponte, e nada mais. Uma travessia sem garantias, sem começo claro e sem fim explicado. Mas ainda assim, uma travessia.


sábado, 8 de fevereiro de 2025

Mágoas da Criação

Lembro quando estávamos almoçando num dia normal do trabalho quando minha amiga desabafou:

 

— Sabe, às vezes acho que minha mãe não me amava. Quer dizer, ela cuidava de mim, me educou, mas nunca houve carinho, nunca um abraço espontâneo, uma palavra de afeto. Só exigência, cobrança. Hoje, adulta, me pego sem saber como demonstrar afeto, como se isso fosse uma língua estrangeira.

 

Fiquei em silêncio por um instante, lembrei que ela não foi a primeira pessoa a desabafar sobre esta mesma mágoa. Esse tipo de confissão não pede respostas prontas. O que dizer? Que ela deveria superar? Que sua mãe fez o melhor que podia? Que o amor pode estar presente mesmo sem demonstração? Tudo isso pode ser verdade, mas nenhuma dessas frases apaga a ferida de uma infância sem afeto.

 

O Peso da Ausência

A filosofia há tempos se debruça sobre a influência da criação na formação do indivíduo. Freud já apontava que as relações primárias moldam nosso inconsciente de maneiras profundas. Simone de Beauvoir, por outro lado, questionava a construção social do papel materno e como certas mulheres viam a maternidade mais como um dever do que como uma experiência afetiva.

 

O problema é que, para a criança, o afeto é a primeira forma de reconhecimento. Sem ele, o mundo pode parecer hostil, frio, mecânico. A criança aprende a se proteger, mas, ao fazer isso, constrói muros internos que podem durar uma vida inteira. Crescer sob um olhar que apenas julga, mas não acolhe, forma um adulto que pode passar anos tentando provar seu valor—às vezes, sem saber exatamente para quem.

 

O Ciclo da Carência

É curioso como esse tipo de criação dura pode gerar duas respostas opostas. Alguns replicam o mesmo padrão, tornando-se pais rígidos e distantes, pois foi assim que aprenderam a amar. Outros, ao contrário, se tornam exageradamente afetuosos, como se quisessem compensar o que não tiveram. E há aqueles que ficam no meio do caminho, sempre inseguros sobre como se conectar emocionalmente.

 

O filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé fala sobre como as relações humanas são marcadas pela falta. Ele sugere que o amor materno é muitas vezes idealizado, mas, na realidade, está cheio de falhas, limitações e até ressentimentos. Isso significa que, talvez, nossa sociedade precise aceitar que nem toda mãe consegue amar da forma esperada, seja por suas próprias dores, por sua história, ou simplesmente por ser humana demais.

 

O Que Fazer com Essa Mágoa?

Minha amiga perguntou, depois de um tempo:

 

— E agora? Como eu curo isso?

 

Acho que ninguém tem uma resposta definitiva. Algumas pessoas buscam terapia, outras tentam encontrar figuras maternas substitutas, e há quem aprenda a se dar o carinho que nunca recebeu. O importante talvez seja reconhecer que a falta de afeto não define o nosso valor.

 

No fim, olhar para trás sem rancor pode ser o maior ato de liberdade. E, quem sabe, aprender a demonstrar afeto, ainda que aos poucos, seja a maior revolução para quem cresceu sem ele.