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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Amálgama de Dramas

Você está esperando o ônibus, celular na mão, olhos cansados. De repente, recebe uma mensagem da sua irmã dizendo que o avô caiu e foi levado ao hospital. Enquanto tenta processar isso, alguém atrás de você grita no telefone: “Ela me traiu, cara!”. À sua frente, um casal se abraça como se fosse a última vez. E ali está você, tentando ir ao trabalho. Num ponto de ônibus comum, o mundo inteiro virou palco de um amálgama de dramas.

Essa cena cotidiana revela uma verdade profunda: a vida humana é feita de sobreposições emocionais. Não vivemos histórias separadas em gavetas organizadas. Vivemos tudo junto — e de preferência, ao mesmo tempo. Cada um carrega seu próprio enredo, com personagens, pausas dramáticas, reviravoltas. E tudo isso acontece ao nosso redor sem pedir licença, como se o mundo fosse um palco girando sem direção única.

Imagine agora uma mulher fazendo uma apresentação importante no trabalho. Ela ensaiou por dias, está confiante, sorridente. Mas seu filho ficou doente de madrugada, ela mal dormiu, e enquanto fala sobre resultados trimestrais, está com a mente presa na febre do menino. No mesmo escritório, o colega ao lado acabou de saber que vai ser pai, e está radiante — quase flutuando. E no outro canto, alguém acabou de ser demitido. Nenhuma dessas histórias se anula. Todas coexistem, se atravessam. E ninguém tem como sair ileso desse entrelaçamento de mundos emocionais.

No supermercado, uma senhora chora discretamente no corredor dos enlatados. Perdeu o marido recentemente e ainda não aprendeu a fazer compras para uma só pessoa. Enquanto isso, um adolescente reclama alto do preço do energético, e uma mãe tenta entreter o filho que berra porque quer um pacote de salgadinhos. Todos ali parecem travar uma batalha invisível, mas real. E todos estão, de alguma forma, em cena — mesmo que ninguém aplauda.

Nas redes sociais, o drama ganha uma nova camada: a da performance. Alguém posta uma taça de vinho com a legenda “recomeço”, mas está tentando sobreviver a um fim traumático. Outro exibe a chegada à academia com emojis de fogo, tentando esconder a dor do diagnóstico de depressão. Há quem poste paisagens serenas tentando convencer o mundo (e a si mesmo) de que está em paz. A amálgama continua existindo — só que editada. Com filtro.

O filósofo francês Edgar Morin, ao pensar a complexidade, dizia que não se pode isolar uma parte da vida e achar que isso explica o todo. A realidade é feita de redes, de entrelaçamentos. O drama de um indivíduo nunca é apenas dele. Ele respinga, reverbera, se mistura ao dos outros. Walter Benjamin também observava que a experiência moderna é fragmentária — vivemos em pedaços, justapostos, sobrepostos. Somos, todos nós, camadas de histórias em conflito.

A vida, assim, não é um roteiro limpo. É uma tapeçaria com fios soltos, bordados interrompidos, linhas que mudam de cor no meio do ponto. Tentar dar coesão total ao próprio enredo é ignorar que, muitas vezes, o drama do outro é o que altera o rumo da nossa história. E isso não é fraqueza — é condição humana.

Cada pessoa se torna, assim, um ponto de convergência de múltiplas histórias. O drama pessoal já é por si só uma construção simbólica: o que chamamos de “drama” geralmente é um acontecimento que rompe com o ritmo esperado, que exige reposicionamento. Mas quando isso se mistura com o sofrimento dos outros, cria-se uma atmosfera emocional espessa. A amálgama surge aí: no entrelaçamento de experiências que não respeitam hierarquias de importância. A morte de um gato pode conviver no mesmo espaço mental que uma crise existencial sobre o sentido da carreira.

A amálgama de dramas pode parecer um fardo. Mas talvez seja ela o que nos mantém humanos. Viver no meio do excesso emocional dos outros, sentir o peso e a vibração de histórias que não são nossas, nos ensina a ter cuidado, a reconhecer o outro para além da superfície. O drama, no fim, é uma forma de conexão. É quando o sofrimento de um desconhecido nos toca que percebemos: estamos todos entrelaçados.

No café da manhã de um casal em crise, no olhar distante de um motorista de aplicativo, na ansiedade disfarçada de uma piada no elevador — ali está a amálgama. E cabe a nós aceitar que viver bem talvez seja menos sobre controlar a narrativa e mais sobre aprender a conviver com os roteiros que atravessam o nosso.

Porque se cada um carrega dentro de si um romance inacabado, então o mundo é uma biblioteca viva de histórias cruzadas. E a amálgama de dramas é o que torna tudo isso — confuso, intenso, absurdo — profundamente real.

sábado, 12 de abril de 2025

Lembrança Incerta

Estava pensando, falando cá com meus botões, e se a nossa memória não fosse confiável? Seria o caso das falhas da lembrança e a construção da realidade?

Outro dia, meu filho contou uma história da infância com riqueza de detalhes: nós dois brincando na sala de casa, uma bronca que levamos por termos derrubado café sobre o tapete. Eu, sinceramente, não lembrava de nada disso. E mais: achava que eu nem estava presente naquela ocasião. Ficamos os dois convencidos de que nossa versão era a correta — e, ironicamente, ambos estávamos certos... e errados.

A questão é que a memória não é um espelho do passado, e sim uma reconstrução narrativa, como já sugeria o filósofo francês Henri Bergson. Em sua obra Matéria e Memória (1896), ele argumenta que lembrar não é simplesmente armazenar e recuperar dados, mas sim reinterpretar o passado à luz do presente. Cada lembrança, portanto, não é uma cópia, mas uma reinvenção.

Essa ideia foi posteriormente reforçada pelas ciências cognitivas. Elizabeth Loftus, psicóloga cognitiva e pesquisadora da Universidade da Califórnia, demonstrou com inúmeros experimentos que memórias falsas podem ser implantadas com facilidade. Em um de seus estudos clássicos, participantes foram convencidos de que haviam se perdido em um shopping quando crianças — e muitos não apenas acreditaram, como acrescentaram detalhes fictícios à lembrança. Isso colocou em xeque a validade dos testemunhos oculares e mostrou como somos mais vulneráveis à manipulação do que gostaríamos de admitir.

E não é só sobre manipulação externa. O próprio cérebro preenche lacunas quando precisa. Como observou Oliver Sacks, neurologista e escritor, em O Homem que Confundiu Sua Mulher com um Chapéu, pessoas com lesões neurológicas criam versões alternativas da realidade com base em memórias fragmentadas. Essas versões são, para elas, tão reais quanto qualquer outra.

Nosso cotidiano está repleto de exemplos mais sutis. Um casal que discorda sobre o tom de uma conversa; irmãos que lembram diferentes versões da mesma viagem; o funcionário que acha ter sido injustiçado por um chefe que sequer se recorda do episódio. A memória, muitas vezes, não guarda fatos — ela guarda emoções associadas a fatos. E isso muda tudo.

O filósofo britânico Bertrand Russell advertia que “a lembrança é sempre, em certa medida, um ato de criação.” Já Friedrich Nietzsche foi além: em A Genealogia da Moral, ele sugere que a memória é moldada pela necessidade social — aprendemos a lembrar da dor para obedecer, lembrar da culpa para sermos domesticados. Ou seja, nem sempre lembramos por vontade própria: muitas vezes lembramos porque fomos ensinados a lembrar de certos eventos e não de outros.

Do ponto de vista neurocientífico, sabe-se hoje que cada vez que acessamos uma lembrança, ela é regravada no cérebro — um processo chamado reconsolidação. Isso significa que lembrar é também alterar. Como uma foto que vai perdendo qualidade a cada cópia, a memória se degrada e se adapta. Nossos neurônios, longe de serem arquivos estáticos, são mais como um sistema de edição contínua.

Isso nos leva a um dilema curioso: se a nossa memória é fluida, o que isso diz sobre a nossa identidade? Somos, em parte, o que lembramos — nossas escolhas, arrependimentos, alegrias e medos. Mas se nossas lembranças mudam, quem somos nós realmente?

Talvez a resposta esteja na aceitação da memória como narrativa. Como uma história contada por alguém que se reconstrói com o tempo. E isso não precisa ser visto como um problema. A memória criativa é também uma memória que cura, que reinterpreta o sofrimento, que permite recontar a própria vida com um novo significado.

No fundo, a memória não busca a verdade literal — ela busca sentido. E, como escreveu Clarice Lispector: “o que me salva é o saber que, mesmo quando erro, estou tentando acertar o caminho do que me importa”. Lembrar é, muitas vezes, isso: tentar acertar o caminho do que importa.