Lugares onde o tempo dobra devagar
Neste
feriado de primeiro de maio passeamos no Vale dos Vinhedos em Bento Gonçalves e
experenciamos uma viagem a portais sutis presentes em cada visada naquelas belíssimas
paisagens. Tem lugares que não se explicam, só se sentem. Pode ser a sala da
avó com cheiro de bolo e móveis antigos, um corredor mal iluminado onde o
silêncio parece suspenso, ou aquele trecho de estrada cercado por árvores que
sempre faz a gente respirar mais fundo. A gente passa, e algo muda — como se
o tempo ficasse líquido e a alma mais leve. Não há placa, não há senha, mas
quem já passou por um desses sabe: são portais sutis.
Não
falo aqui de buracos de minhoca nem de ficção científica (apesar de adorar).
Falo de momentos e lugares em que o cotidiano escorrega, e a realidade
parece... porosa. Como se uma fresta abrisse na parede da rotina, deixando
escapar outro tipo de percepção — um convite ao invisível.
O
tempo se dobra no ordinário
Você
já teve a sensação de estar fora do tempo? Em geral, isso acontece quando
estamos profundamente presentes — algo raro. Pode ser olhando o mar, escutando
alguém que fala com a alma ou até lavando a louça com uma música boa no fundo.
De repente, o relógio perde a importância, e entra-se num outro tipo de
tempo, mais interno, quase sagrado.
O
filósofo francês Henri Bergson dizia que existe um tempo mensurável
(cronológico), mas também existe um tempo vivido — a duração, onde o
passado e o presente se misturam e criam qualidade, não quantidade. Os portais
sutis seriam então pequenas brechas onde a duração se impõe: momentos em que o
tempo não é medido, mas sentido.
O
lugar como espelho de dentro
Alguns
lugares têm uma energia estranha. Não necessariamente boa ou ruim — densa,
diferente, cheia de memória. Pode ser um templo, um jardim abandonado, uma
sala de aula vazia. A psicologia junguiana diria que esses lugares são
ativadores de arquétipos, símbolos que dormem na nossa psique e despertam ao
menor toque. A mística antiga chamaria de lugares de poder. Mas mesmo
quem nunca ouviu falar em Jung ou xamanismo percebe: há lugares onde o
invisível encosta.
A
arquitetura, o cheiro, a luz filtrada por uma janela em ângulo esquisito — tudo
colabora para criar uma espécie de dobra entre o mundo interno e o externo.
Nesses lugares, ficamos mais sensíveis, mais conectados, às vezes até mais
vulneráveis. São portais que não se atravessam com os pés, mas com a alma.
O
invisível na rotina: é preciso perceber
Portais
sutis não precisam ser místicos nem distantes. Eles podem estar no banco do
ônibus onde você se emociona com uma música, no banheiro do escritório onde
você respira fundo e se reencontra por um segundo, ou naquele instante em que
uma criança te olha e você sente que ela te viu de verdade. São como notas
dissonantes no acorde da realidade: pequenas pausas que despertam algo que
estava adormecido.
O
problema é que vivemos correndo. E portais sutis são delicados. Eles não se
abrem com força — eles se revelam no silêncio, na pausa, no vazio. É
preciso cultivar uma escuta fina, quase meditativa, para notar quando o mundo
te chama para dentro dele com mais gentileza do que barulho.
Como
reconhecer um portal?
Talvez
não seja algo que se possa buscar. Mas pode-se estar disponível. A
sensibilidade é o que detecta o que a lógica ignora. O filósofo Gaston
Bachelard falava da "poética do espaço": como a casa, o canto, o
armário ou a escada podem carregar uma dimensão existencial e simbólica que nos
transforma. Talvez, cada pessoa tenha seus próprios portais favoritos — lugares
onde se reencontra com o que é essencial, sem esforço, sem teoria, só estando.
Atravessar
ou ficar?
Às
vezes, passar por um desses portais muda o dia. Às vezes, muda a vida. Um
encontro que parecia pequeno. Uma frase ouvida ao acaso. Um café tomado devagar
num lugar qualquer. O mundo parece igual depois, mas algo dentro mudou de
lugar. É como se o mundo tivesse te sussurrado algo — e você tivesse ouvido.
Epílogo
com um sussurro filosófico
“O essencial é
invisível aos olhos.”
— Antoine de
Saint-Exupéry
Talvez
os portais sutis estejam por toda parte. Não para nos levar a outro mundo, mas
para nos lembrar que este mundo tem muitas camadas. E que às vezes, sem
aviso, uma delas se abre — só para dizer: "Ei, você ainda está vivo.
Sinta."