... e o trabalho na contemporaneidade: O que Viramos?
Você
já notou que quase ninguém mais sabe direito o que é "trabalhar"? Não
no sentido simples — de bater ponto, cumprir tarefa, entregar resultado. Isso
ainda existe. Mas no sentido maior: de construir sentido, sustentar o mundo,
definir quem se é por meio do que se faz.
Antigamente
(digamos: na época de nossos avós e no meu é claro, pois sou sexagenário), o
trabalho parecia ter um lugar fixo: era o emprego, a carteira assinada, o
ofício herdado ou aprendido, o ganha-pão previsível. Hoje, ele é móvel,
líquido, múltiplo — às vezes demais. Tem gente com cinco empregos e nenhuma
profissão. Influencers que vivem de si mesmos. Motoristas que são também
designers freelancers nas horas vagas. Professores que vendem bolo no
Instagram.
Zygmunt
Bauman chamaria isso de “trabalho líquido” — como tudo no
mundo líquido-moderno, ele escapa da forma, da fixidez. O sujeito não é mais
"o padeiro do bairro", "o professor da escola", "o
advogado da cidade". Ele é um amontoado de tarefas em rede, um prestador
de serviço perpétuo, uma promessa de produtividade nunca cumprida.
E
o cansaço? Ah... Byung-Chul Han falou bonito disso: vivemos na "sociedade
do desempenho", onde o chefe virou interno. O sujeito se explora
sozinho — acorda cedo, faz curso online, melhora a performance, lê sobre
inteligência emocional... e desaba à noite com crise de ansiedade. Porque no
fundo, o trabalho se colou à identidade: "sou o que produzo".
E
o ócio criativo, que Domenico De Masi prometia? Virou privilégio raro —
como férias em lugar sem wi-fi.
Mesmo
assim, há beleza nesse caos: nunca foi tão possível inventar ofícios novos,
misturar saberes, reinventar-se aos 40, aos 60. A contemporaneidade tem dessas
contradições: cansa, mas dá chance de fuga. Precariza, mas liberta de velhas
jaulas.
Talvez
seja como aquele personagem de Ítalo Calvino em O Barão nas Árvores:
viver entre galhos instáveis, nunca tocando o chão firme — mas vendo o mundo de
um ângulo novo.
Porque
trabalhar hoje não é mais só sustento. É sobrevivência simbólica. É procurar
sentido. Ou, no mínimo, manter o vazio longe por mais uma tarde.
Mas
talvez o exemplo mais gritante da mutação do trabalho na contemporaneidade seja
a figura do "empreendedor de si mesmo" — um sujeito que, no
fundo, não empreende nada além da própria força de trabalho precarizada.
Empresas como Uber, iFood, Rappi, Amazon transformaram o antigo trabalhador
assalariado em "parceiro", "colaborador",
"motorista autônomo", como se o sujeito tivesse aberto uma
microempresa quando, na prática, só perdeu direitos: sem férias, sem décimo
terceiro, sem seguro contra acidente, sem previdência garantida.
É
o velho truque do capital disfarçado de modernidade: transferir os riscos para
o indivíduo e manter os lucros com a plataforma. Como bem analisou Ricardo
Antunes, no capitalismo digital de plataformas o trabalho se esconde atrás
de palavras bonitas — flexibilidade, autonomia, liberdade — enquanto esmaga o
tempo de descanso e a segurança mínima. O trabalhador, que antes era explorado
sob contrato formal, agora é explorado sem contrato algum.
Postagem
no Instagram da análise do sociólogo Ricardo Antunes:
https://www.instagram.com/reel/DH67w1FPGBi/?utm_source=ig_web_copy_link
Parece
liberdade, mas é servidão voluntária. Parece escolha, mas é necessidade.
Afinal, quem pode realmente escolher quando não há alternativas?
Pierre
Dardot e Christian Laval chamam essa lógica de "nova
razão do mundo": um neoliberalismo que não precisa mais mandar — basta
ensinar cada um a explorar a si mesmo. O sujeito virou empresa de si mesmo,
gerente da própria miséria, responsável por seu sucesso ou fracasso num mercado
onde quase ninguém vence. Até o desempregado, nessa lógica cruel, é culpado por
não ter se reinventado o suficiente.
O
paradoxo da era é este: nunca se falou tanto em "ser dono do próprio
nariz" e nunca tantos trabalharam sem qualquer poder real sobre o
próprio destino laboral. O trabalhador virou um "empreendedor
compulsório", jogado no mercado sem rede de proteção — uma engrenagem
descartável na grande máquina do capital global.
E
ainda assim, no meio desse cenário duro, pulsa a velha pergunta: é possível um
outro trabalho? Um outro modo de viver e produzir sentido, fora dessa
engrenagem? A resposta talvez esteja nos pequenos gestos de fuga — na recusa,
na solidariedade, na invenção coletiva. Porque trabalho, no fundo, é também
aquilo que escolhemos fazer do tempo e da vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário