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sexta-feira, 18 de julho de 2025

Eu e Tu

Breve ensaio sobre a obra de Martin Buber

Tem gente que passa pela vida colecionando contatos; outras, colecionam encontros. A diferença parece sutil, mas é o que separa uma vida superficial de uma vida profunda. Martin Buber, filósofo austríaco-judeu, entendeu isso como poucos. Em Eu e Tu (1923), sua obra mais conhecida e comentada, ele nos convida a repensar a forma como nos relacionamos — não só com os outros, mas com o mundo, com a natureza, com Deus e até conosco.

Uma filosofia do encontro

Em Eu e Tu, Buber propõe que a existência humana se estrutura a partir de dois modos fundamentais de relação: o Eu-Isso e o Eu-Tu.

  • Eu-Isso é o modo como tratamos as coisas, os objetos, o que usamos e manipulamos. Nessa relação, o outro (ou aquilo) é uma função, um instrumento, um dado a ser compreendido ou analisado. É a linguagem da ciência, da técnica, das rotinas funcionais da vida.
  • Eu-Tu, por outro lado, é o espaço do encontro verdadeiro. Quando dizemos “Tu”, não há distanciamento, não há separação entre sujeito e objeto — há presença. Não se trata de conhecer o outro, mas de estar diante dele com inteireza. Um olhar demorado, um gesto silencioso, uma escuta profunda — aí mora o Tu.

Quantas vezes por dia você trata as pessoas como um “Isso”?

Seja sincero: quando foi a última vez que você ouviu alguém sem pensar na resposta? Que olhou para um amigo, ou mesmo para uma árvore, sem pressa, sem intenção, apenas presente? Será que estamos mesmo vivendo — ou apenas gerenciando funções?

Buber não está dizendo que o mundo do “Isso” é ruim ou desnecessário — afinal, vivemos nele o tempo todo. Mas sem a experiência do “Tu”, a vida se esvazia. Tornamo-nos engrenagens, vozes automatizadas, seres que falam mas não se encontram.

Um livro pequeno com um abismo dentro

Apesar de ter pouco mais de cem páginas, Eu e Tu é um livro denso, quase poético. Buber não escreve como um professor que explica, mas como alguém que tenta nos acordar para algo que já sabemos — só esquecemos. Ele nos lembra que a relação Eu-Tu não pode ser planejada nem forçada; ela acontece, nos atravessa e nos transforma.

Você ainda acredita que é possível encontrar alguém de verdade — sem máscaras, sem filtros, sem medo?

Será que conseguimos, em meio a tantas distrações, permitir que algo nos toque de forma tão real que até o tempo pare por um momento? Quantas relações você vive apenas no piloto automático?

Ao final, Buber aponta que é justamente no “Tu absoluto” — Deus — que todas as relações Eu-Tu encontram sua origem e plenitude. Não um Deus conceito, mas um Deus que se revela no encontro, na reciprocidade, na presença.

E se Deus estiver em tudo aquilo que olhamos de verdade, mas ignoramos por hábito?
Será que a espiritualidade não mora justamente na qualidade da atenção que damos às coisas simples?

Para os dias de hoje

Num mundo de redes sociais, curtidas e mensagens instantâneas, Eu e Tu soa como um convite contracorrente. Será que ainda sabemos dizer “Tu” com o coração inteiro? Será que conseguimos olhar alguém — ou algo — sem imediatamente classificá-lo, julgá-lo ou usá-lo?

Martin Buber não oferece respostas prontas, mas oferece uma chave para a experiência. E talvez essa chave seja tudo o que precisamos para abrir a porta de uma vida mais humana, mais presente e mais real.


quarta-feira, 23 de abril de 2025

Em hibernação

 

Hoje acordei com aquela sensação de não ter acordado. O corpo já estava de pé, o café já estava feito, os compromissos chamavam pelo nome, mas alguma parte de mim permanecia deitada — num lugar sem tempo, onde nada acontece e tudo apenas espera. Foi aí que me ocorreu: será que a alma também hiberna?

Hibernar não é dormir. É algo mais profundo, mais existencial. É como se uma parte da vida entrasse em modo de espera, enquanto o resto continua fingindo movimento. Vemos isso em animais — ursos, sapos, marmotas — que se enterram no silêncio frio para economizar energia e atravessar o inverno. Mas e nós? O que fazemos quando o inverno não está do lado de fora, mas dentro da gente?

Em muitos momentos da vida, entramos num tipo de hibernação psíquica. Quando perdemos alguém, quando o mundo pesa demais, quando o entusiasmo que nos movia parece ter sumido por motivos que nem conseguimos nomear. Continuamos indo ao trabalho, postando nas redes, respondendo mensagens — mas algo essencial entrou em pausa. A filosofia tradicional chamaria isso de acídia, os existencialistas talvez falassem em angústia. Mas talvez seja mais simples (e mais honesto) admitir: estamos apenas hibernando.

O filósofo romeno Emil Cioran, mestre em sentir a paralisia do espírito, escreveu que “o fato de existir é uma indiscrição imperdoável”. Ele percebia o fardo de estar acordado demais, consciente demais. Talvez hibernar seja, então, uma forma de proteção contra esse excesso — um jeito de salvar algo em nós do desgaste permanente do estar no mundo.

Mas o curioso da hibernação é que ela não é um fim. É uma suspensão, sim, mas que guarda em si a possibilidade do retorno. A semente que não germinou no outono não está morta. Está esperando o momento certo. E talvez essa seja a sabedoria secreta de hibernar: entender que parar não é fracassar, que se recolher não é se render.

Hoje, mais do que nunca, somos pressionados a estar sempre ativos, sempre visíveis, sempre produtivos. Hibernar vira quase um pecado capital. Mas talvez seja uma forma de resistência. De cuidado. De escuta interior. Quando tudo diz “acelere”, hibernar pode ser uma maneira de ouvir o que ainda não está pronto para ser dito.

Então, se você sentir que está num tempo estranho, em que nada floresce e tudo parece em suspensão, não se desespere. Não tente forçar o desabrochar. Pode ser que seu inverno seja justamente o tempo mais precioso — aquele em que a alma se refaz, em silêncio, preparando-se para um novo ciclo.

Talvez hibernar seja, no fim, uma das formas mais elegantes de sabedoria: saber quando parar, confiar no invisível, e permitir que a vida nos transforme no escuro.