Exaustos de Nós Mesmos: a obrigação de performar o eu na era digital
Numa
manhã qualquer, abrimos o celular e já somos lançados num universo de vidas
editadas. Sorrisos, conquistas, corpos, viagens, produtividade — tudo embalado
num brilho de sucesso contínuo. Não é mais necessário ser feliz; basta parecer.
E parecer muito. De preferência com carisma, autenticidade e filtros bem
escolhidos. Nessa maratona silenciosa de aprovação, o eu se transforma num
projeto de marketing. Vivemos, muitas vezes, menos para estar e mais para
mostrar. E o resultado não é glória — é exaustão.
Retomar
este tema para reflexão me parece importante, visto que não temos como negar a
inundação de situações reais que a cada dia a quantidade supera a do dia
anterior, por isto vamos explorar a questão.
O
filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em A Sociedade do Cansaço,
argumenta que a transição da sociedade disciplinar para a sociedade do
desempenho trouxe um novo tipo de opressão: a autoexploração disfarçada de
liberdade. Hoje, somos pressionados a ser produtivos, criativos, positivos,
resilientes e excepcionais — o tempo todo. Não há mais um patrão externo
exigindo resultados; somos nós mesmos que nos cobramos, num ciclo ininterrupto
de superação. “Yes, we can” (Sim, nós podemos) virou sentença. A liberdade de
ser se converteu na prisão do dever constante de melhorar.
No
campo da sociologia, Pierre Bourdieu ajuda a entender como essa lógica
do desempenho se estrutura socialmente. O prestígio nas redes sociais, por
exemplo, é uma forma de capital simbólico — aquele que dá visibilidade e
reconhecimento. Curtidas, comentários, seguidores e compartilhamentos são novas
formas de moeda. Quem acumula, ganha poder. Quem não participa, some. A
obrigação de estar sempre visível cria uma economia da atenção em que a
subjetividade se curva aos algoritmos. Não basta viver: é preciso performar a
própria existência com consistência e carisma.
Essa
lógica de espetáculo já havia sido anunciada por Guy Debord, em sua obra
A Sociedade do Espetáculo. Para ele, o mundo moderno substituiu o ser
pelo parecer: tudo se torna imagem, inclusive a dor. O luto, a solidão, a
superação — tudo pode e deve ser exibido, com a devida estética. Nesse
contexto, a vida só ganha sentido social se puder ser consumida. Assim, cada
pessoa se torna uma vitrine, e o “eu” vira mercadoria.
Há
também um efeito existencial profundo. Em Ser e Tempo, Heidegger
discute a existência inautêntica — quando vivemos segundo o que os outros
esperam, e não segundo nossa própria verdade interior. Nas redes, essa
inautenticidade se amplifica: passamos a nos moldar de acordo com as
expectativas alheias, com o que é mais comentado, compartilhado, desejado. O
“eles”, como diz o filósofo, passa a nos habitar. Deixamos de ser para nos
tornarmos personagens de um script coletivo.
Esse
movimento não se restringe aos jovens ou aos influenciadores. Ele se espalha
pelo mundo do trabalho, onde cada profissional precisa “vender sua imagem” com
inteligência emocional, marca pessoal e presença digital ativa. Os currículos
foram substituídos por portfólios públicos. A naturalidade, pelo networking
constante. Mesmo a pausa virou performance: descanso com propósito, viagem com
storytelling, silêncio com legenda.
Na
juventude, a pressão é pelo destaque. Ninguém quer ser mediano. O ordinário
virou sinônimo de fracasso. Na velhice, o dilema é outro: manter-se relevante.
Muitos se sentem expulsos de um jogo cuja linguagem já não dominam. A
obsolescência social não é mais só tecnológica — é existencial. O tempo se
tornou um concorrente, e a idade, um risco de invisibilidade.
Mas
talvez ainda haja uma saída. Não grandiosa, não revolucionária, mas sutil e
silenciosa. Pode começar com um gesto pequeno: escolher não publicar um
feito, não responder uma provocação, não performar o descanso.
Recuperar o gosto pelo anonimato, pela insignificância produtiva, pela
liberdade de simplesmente existir — sem que isso precise virar conteúdo. Como
escreveu o poeta Manoel de Barros:
“O
que a gente não inventa, vira.”
E
talvez seja isso que nos falte: menos invenção de si e mais vir-a-ser.
Menos
brilho e mais verdade.
Menos
performance e mais presença.
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