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segunda-feira, 9 de junho de 2025

Manejo da Impressão

“Quem é você quando ninguém está olhando?”

Aqui vamos trabalhar num ensaio sobre o manejo da impressão e os palcos da vida cotidiana

Você já parou para pensar que, na vida, somos todos atores? Não do tipo que sobe ao palco com aplausos — mas daqueles que atuam em reuniões, em jantares de família, no elevador com o vizinho, até mesmo no grupo do WhatsApp. Às vezes o papel exige bom humor, outras vezes impaciência contida, e, com frequência, um certo esforço para parecer que estamos bem, mesmo quando não estamos. Nesse grande teatro da vida, o sociólogo Erving Goffman (1922-1982) acende as luzes do palco e revela uma verdade incômoda: não somos um “eu”, somos muitos.

No livro A Representação do Eu na Vida Cotidiana, Goffman apresenta a ideia de que o “eu” que mostramos é fruto de uma performance cuidadosamente gerida — o que ele chama de manejo da impressão. Mas e se formos além? E se esse manejo não for apenas uma adaptação ao social, mas também um modo de sobrevivência filosófica em um mundo que exige máscaras como forma de reconhecimento?

A sociedade como plateia ansiosa

Cada encontro social nos pede um papel. Não um papel escrito por nós, mas roteirizado pelas expectativas alheias. O funcionário precisa parecer produtivo mesmo nos dias de cansaço; o estudante simula interesse diante de um conteúdo que não compreende; a mãe que esconde o choro para sorrir ao filho. Não é mentira. É um acordo tácito: se você performar o suficiente, será aceito.

O manejo da impressão, nesse sentido, não é apenas controle de imagem — é negociação simbólica de pertencimento. A sociedade não quer apenas ver o “eu verdadeiro”; ela deseja ver o que reconhece como normal, funcional e confortável. Assim, ajustamos os gestos, os silêncios, os emojis.

O eu como ficção em construção

Se o mundo é um palco, o “eu” que mostramos é um personagem. Mas seria esse personagem uma farsa? Talvez não. A filosofia contemporânea já não acredita tanto em essências fixas. Para pensadores como Judith Butler, o sujeito se constrói performativamente — ou seja, ele é o que faz repetidamente. E se Goffman nos mostrou o teatro social, Butler revela que essa atuação não é uma máscara sobre um rosto verdadeiro, mas o próprio rosto se formando com cada papel que representamos.

O eu, então, seria uma espécie de remix constante entre o que sentimos e o que o outro exige que mostremos. Um mosaico de pequenos “eus” que se ajustam conforme o palco muda — do metrô à sala de jantar, do encontro romântico ao boletim médico.

O bastidor como espaço de reconciliação

Nos bastidores, longe do público, caem as máscaras — ou pelo menos, trocam-se por outras. Mas será que ainda existe um “eu autêntico” nesse lugar escondido? Goffman não responde com clareza, mas nos convida a pensar que mesmo nos bastidores há performance, ainda que mais relaxada. A solidão, o espelho, o travesseiro à noite — são também palcos, embora com luzes mais suaves.

Contudo, é nesse momento íntimo que talvez surja a chance de uma autoescuta. De pensar: “será que me tornei aquilo que performei por tanto tempo?” A pergunta não é retórica. A vida tem o poder de nos transformar pelas repetições que aceitamos. É o risco da performance: virar o papel que foi criado para agradar o outro.

Viver é atuar — mas com consciência

Não há como viver fora do teatro social. Somos seres em relação, e isso exige ajustes, cortes, improvisos. Mas o perigo não está em representar. O risco mora na inconsciência do papel. Quando esquecemos que estamos atuando, entregamos o volante da nossa identidade a uma plateia que nem sempre aplaude com justiça.

Por isso, o manejo da impressão, mais do que uma técnica social, deve ser também uma ferramenta filosófica de autoconhecimento. Reconhecer o personagem que estamos sendo, entender por que o escolhemos, e nos perguntar, vez ou outra: quem seríamos se o palco estivesse vazio?

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Liberdade na Impermanência

 

Vamos pensar como dançar no fluxo da vida

Outro dia, esperando o sinal abrir, vi uma folha seca rodopiar no asfalto. Não seguia em linha reta, tampouco sabia onde iria parar. Mas havia algo belo ali. Não por ser frágil ou por voar, mas pela leveza com que se entregava ao vento. Pensei: talvez isso seja liberdade — não o controle absoluto, mas a entrega consciente ao movimento das coisas.

Somos criados com a ideia de que liberdade é escolher: decidir o curso da vida, traçar objetivos, manter coerência, garantir permanência. Mas, e se estivermos olhando na direção errada? E se a verdadeira liberdade estiver, paradoxalmente, na impermanência — nesse terreno instável onde nada é fixo, tudo escapa e nada nos pertence?

A impermanência é desconfortável. Derruba certezas, desfaz promessas, modifica rotas. Mas também é ela quem nos salva da prisão das repetições, dos papéis sociais eternizados, dos vínculos que já não têm sentido. É na instabilidade que nos abrimos ao novo — e talvez, por isso, sejamos mais livres quando não estamos em controle, mas em presença.

O filósofo coreano Byung-Chul Han, crítico da sociedade da performance, alerta para o esgotamento provocado pelo excesso de liberdade entendida como autonomia produtiva. Segundo ele, tornamo-nos senhores e escravos de nós mesmos. Em contrapartida, talvez a liberdade que nos cura não seja aquela da vontade tirânica, mas a da fluidez — aceitar que tudo muda, inclusive nós.

Na prática cotidiana, quem já não se reinventou após uma perda? Um emprego que acaba, um amor que não continua, um lugar que já não é mais lar. No início, o chão some. Depois, o espaço se abre. A impermanência rasga o véu das ilusões e, com isso, revela outra coisa: que não somos um "eu fixo", mas uma constelação de momentos, gestos, escolhas, arrependimentos e recomeços.

O budismo, milenar nesse saber do efêmero, ensina que tudo o que surge está destinado a desaparecer. E que é justamente esse caráter transitório que deve nos libertar do apego, não por desinteresse, mas por compaixão — porque o que é passageiro merece ser vivido com delicadeza, e não com posse.

Ser livre, então, pode ser menos uma conquista e mais uma postura: dançar com o que vem, em vez de resistir. Permitir que as coisas fluam, inclusive as partes de nós que já não cabem mais. Liberdade, nessa chave, não é um estado estático, mas uma dança silenciosa entre o que somos e o que deixamos de ser.

Assim como a folha que rodopia no ar sem saber onde vai cair, talvez sejamos mais autênticos quando aceitamos o vento. Não como fraqueza, mas como arte de se mover com o mundo. Liberdade na impermanência — uma filosofia que não promete segurança, mas oferece leveza. E, quem sabe, isso já seja o suficiente.