E o teatro da mente
Quem
sou eu quando ninguém está olhando? E mais ainda: quem sou eu quando nem eu
mesmo estou olhando? A questão da identidade pessoal parece antiga, quase
intuitiva, mas sob a lente da filosofia da mente, ela se desdobra em problemas
profundos e instigantes. Ao invés de um “eu” fixo e essencial, encontramos uma
construção instável, narrada em tempo real pela consciência.
Daniel
Dennett, filósofo estadunidense, propõe que o “eu” é como um centro
de gravidade narrativo: útil, mas fictício. Assim como o centro de
gravidade de um objeto físico não é uma parte real, mas uma abstração
matemática, o “eu” é o produto de múltiplos processos mentais operando juntos
sem um comandante central. A mente seria, então, um teatro sem diretor, onde
personagens — desejos, memórias, intenções — improvisam em cena. Ser alguém é
manter um mínimo de coerência narrativa, mesmo que essa coerência seja frágil e
construída retrospectivamente.
Mas
esse modelo ganha contornos mais precisos quando entramos no pensamento do filósofo
brasileiro Cláudio Costa. Em sua obra voltada à filosofia da mente,
Costa oferece uma leitura analítica da identidade pessoal a partir da
intersecção entre consciência, linguagem e persistência ao longo do tempo.
Influenciado por autores como Kripke, Parfit e Wittgenstein, ele aborda o
problema da identidade não como uma questão de essência, mas de referência
rígida e continuidade psicológica.
Para
Cláudio Costa, a identidade pessoal está ligada à possibilidade de reconhecimento
e atribuição de predicados mentais a um mesmo sujeito ao longo do tempo,
mesmo diante de variações psicológicas. Em outras palavras, dizer que "sou
o mesmo" não implica estabilidade absoluta de caráter, mas uma continuidade
mínima das condições que me tornam atribuível como sujeito de experiências e
ações. Esse sujeito, no entanto, não é um "fantasma na máquina",
mas uma instância funcional, sustentada pela linguagem e pela memória.
Nesse
ponto, Costa se distancia tanto de visões essencialistas quanto de
reducionismos fisicalistas extremos. Ele rejeita a ideia de uma alma
substancial e também a de que identidade pessoal possa ser reduzida a estados
cerebrais isolados. Em vez disso, propõe uma ontologia de segunda ordem, onde o
“eu” é uma construção conceitual que permite nomear e organizar um fluxo
contínuo de estados mentais.
Essa
leitura nos ajuda a entender por que somos capazes de reconhecer a nós mesmos
mesmo após grandes transformações — emocionais, cognitivas ou físicas. A
identidade pessoal, nesse sentido, é um conjunto de critérios lógicos e
conceituais que tornam possível o uso contínuo do pronome “eu” com
significado prático e ético.
É
possível ver aqui um eco da metáfora teatral de Dennett, mas agora com uma
moldura analítica mais precisa: o palco é sustentado por estruturas conceituais
que nos permitem distinguir entre “alguém mudado” e “alguém outro”. O “eu” é
uma entidade conceitual persistente, mesmo quando os personagens do enredo se
reinventam.
Na
vida cotidiana, essa abordagem é útil para explicar por que às vezes sentimos
que mudamos muito — e, ao mesmo tempo, continuamos a nos reconhecer. Por que
dizemos “aquilo não parecia comigo”, mesmo sabendo que fomos nós que fizemos?
Porque há, na base da identidade, um julgamento reflexivo que busca
coerência, continuidade e autoria — ainda que parcial — das próprias ações.
Cláudio Costa chama atenção para esse vínculo entre identidade e
responsabilidade moral: reconhecer-se como o mesmo é também reconhecer-se
como autor.
Ser
alguém, nesse teatro da mente, não é possuir uma substância oculta e imutável,
mas sustentar, com algum êxito, a continuidade de um papel que reconhecemos
como nosso. A identidade pessoal, para Dennett, é a ficção funcional que emerge
da mente múltipla; para Cláudio Costa, é a construção lógica e conceitual
que permite a referência contínua ao sujeito de experiências mentais. Em
ambos os casos, o “eu” não é um dado, mas uma conquista narrativa e racional. O
que chamamos de “ser alguém” é, no fundo, a capacidade de organizar o que passa
pela mente como se tivesse um autor — mesmo que esse autor esteja em constante
reescrita.
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