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quinta-feira, 14 de agosto de 2025

Os Perâmbuladores

Reflexões sobre o andar sem destino

Há uma classe de pessoas que não marcham, não caminham, nem viajam: perambulam. Não se dirigem a um fim, mas se deixam levar por um movimento interior que não pede destino, apenas deslocamento. São os perâmbuladores — figuras que desafiam a lógica finalista da produtividade e da direção. À primeira vista, parecem vagos; à segunda, são profundos como o silêncio entre os passos.

Perambular é uma forma de resistência ao tempo cronológico. Enquanto o mundo gira em torno de horários e metas, o perâmbulador faz do passo um gesto filosófico: não acelera, não recua, apenas está. Ele transforma a cidade em pensamento, o caminho em corpo, a errância em morada. Nessa leveza errante, há uma sabedoria sem livro.

Walter Benjamin, em sua reflexão sobre o flâneur, já intuía esse espírito errático. O flâneur, que vagava pelas passagens parisienses do século XIX, não buscava sentido no destino, mas no olhar atento às vitrines, às pessoas, aos sons. Era um leitor da cidade com os pés. O perâmbulador vai além: não apenas observa, mas dissolve seu eu no movimento. Já não há separação entre quem anda e o mundo por onde se anda.

Enquanto o flâneur ainda se reporta a um contexto urbano e estético, o perâmbulador é uma figura quase existencial. Como diz o filósofo brasileiro Vilém Flusser, em Filosofia da Caixa Preta, “existir é ser jogado num mundo e ter de escolher caminhos.” O perâmbulador escolhe o caminho sem mapa, não por ignorância, mas por ousadia. Ele não teme se perder porque compreende que, no fundo, tudo o que é vivo já está fora do lugar.

Na cidade há ruas que todos conhecem: a que leva ao trabalho, ao supermercado, à escola, à igreja. São linhas retas de um desenho previsível. Mas há outras ruas — menos lembradas, feitas de calçadas tortas, muros grafitados e gatos que dormem sob carros antigos. É nelas que habitam os perâmbuladores, mesmo que só de passagem.

Perambular é como ser uma pipa solta entre os prédios, navegando não pelo vento da pressa, mas pela brisa da curiosidade. Cada esquina é uma pergunta. Cada semáforo, uma pausa para ouvir o coração da cidade bater. O perâmbulador não está atrasado nem adiantado — está em compasso com o que ainda não tem nome.

Imagine uma cidade como uma partitura. Os carros são as notas marcadas; os pedestres apressados, as batidas regulares. Já os perâmbuladores são os silêncios, as pausas, os improvisos de jazz que acontecem entre os compassos. Eles não seguem a melodia — escutam o som das rachaduras no concreto, o assobio do vento entre as grades de um edifício velho, o tilintar de um vendedor de picolé.

Há quem diga que são vagabundos. Mas só porque se esqueceram de vagar. A cidade — quando olhada com olhos que não buscam utilidade — revela pequenas epifanias: uma criança dançando na chuva, uma árvore nascendo entre dois tijolos, uma senhora alimentando pombos como quem distribui bênçãos.

O mundo precisa dos que andam sem rumo. São eles que lembram aos demais que a vida não é só chegada, mas travessia. E que, às vezes, é na rua errada que se encontra a janela certa.

Perambular é uma forma de liberdade quieta. Quem perambula não foge nem busca: apenas está, em suspensão entre o lugar e o fora-do-lugar. É um modo de escutar o mundo com os pés, de pensar sem palavras, de estar presente sem ser esperado.

E talvez, no fundo, todos sejamos perâmbuladores — apenas esquecemos disso quando nos aprisionamos em rotas, metas e relógios. Quem reaprende a andar sem saber onde vai, talvez reencontre, sem querer, o que nunca deixou de procurar.


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