Reflexões sobre o andar sem destino
Há
uma classe de pessoas que não marcham, não caminham, nem viajam: perambulam.
Não se dirigem a um fim, mas se deixam levar por um movimento interior que não
pede destino, apenas deslocamento. São os perâmbuladores — figuras que desafiam
a lógica finalista da produtividade e da direção. À primeira vista, parecem
vagos; à segunda, são profundos como o silêncio entre os passos.
Perambular
é uma forma de resistência ao tempo cronológico. Enquanto o mundo gira em torno
de horários e metas, o perâmbulador faz do passo um gesto filosófico: não
acelera, não recua, apenas está. Ele transforma a cidade em pensamento, o
caminho em corpo, a errância em morada. Nessa leveza errante, há uma sabedoria
sem livro.
Walter
Benjamin, em sua reflexão sobre o flâneur, já intuía esse
espírito errático. O flâneur, que vagava pelas passagens parisienses do século
XIX, não buscava sentido no destino, mas no olhar atento às vitrines, às
pessoas, aos sons. Era um leitor da cidade com os pés. O perâmbulador vai além:
não apenas observa, mas dissolve seu eu no movimento. Já não há separação entre
quem anda e o mundo por onde se anda.
Enquanto
o flâneur ainda se reporta a um contexto urbano e estético, o perâmbulador é
uma figura quase existencial. Como diz o filósofo brasileiro Vilém Flusser,
em Filosofia da Caixa Preta, “existir é ser jogado num mundo e ter de
escolher caminhos.” O perâmbulador escolhe o caminho sem mapa, não por
ignorância, mas por ousadia. Ele não teme se perder porque compreende que, no
fundo, tudo o que é vivo já está fora do lugar.
Na
cidade há ruas que todos conhecem: a que leva ao trabalho, ao supermercado, à
escola, à igreja. São linhas retas de um desenho previsível. Mas há outras ruas
— menos lembradas, feitas de calçadas tortas, muros grafitados e gatos que
dormem sob carros antigos. É nelas que habitam os perâmbuladores, mesmo que só
de passagem.
Perambular
é como ser uma pipa solta entre os prédios, navegando não pelo vento da pressa,
mas pela brisa da curiosidade. Cada esquina é uma pergunta. Cada semáforo, uma
pausa para ouvir o coração da cidade bater. O perâmbulador não está atrasado
nem adiantado — está em compasso com o que ainda não tem nome.
Imagine
uma cidade como uma partitura. Os carros são as notas marcadas; os pedestres
apressados, as batidas regulares. Já os perâmbuladores são os silêncios, as
pausas, os improvisos de jazz que acontecem entre os compassos. Eles não seguem
a melodia — escutam o som das rachaduras no concreto, o assobio do vento entre
as grades de um edifício velho, o tilintar de um vendedor de picolé.
Há
quem diga que são vagabundos. Mas só porque se esqueceram de vagar. A cidade —
quando olhada com olhos que não buscam utilidade — revela pequenas epifanias:
uma criança dançando na chuva, uma árvore nascendo entre dois tijolos, uma
senhora alimentando pombos como quem distribui bênçãos.
O
mundo precisa dos que andam sem rumo. São eles que lembram aos demais que a
vida não é só chegada, mas travessia. E que, às vezes, é na rua errada que se
encontra a janela certa.
Perambular
é uma forma de liberdade quieta. Quem perambula não foge nem busca: apenas
está, em suspensão entre o lugar e o fora-do-lugar. É um modo de escutar o
mundo com os pés, de pensar sem palavras, de estar presente sem ser esperado.
E
talvez, no fundo, todos sejamos perâmbuladores — apenas esquecemos disso quando
nos aprisionamos em rotas, metas e relógios. Quem reaprende a andar sem saber
onde vai, talvez reencontre, sem querer, o que nunca deixou de procurar.
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