E a Rebeldia de Virar a Escada
Se
existe uma mania antiga na humanidade, é a de arrumar as coisas em ordem. Não
basta saber que existem peixes, árvores, gatos, pessoas e estrelas; precisamos
colocar cada um no seu degrau, como se o universo fosse um armário de despensa
bem organizado. Essa vontade de “hierarquizar as criaturas” vem de longe, e já
foi tanto mapa filosófico quanto dogma religioso. Mas, como toda escada, sempre
há alguém que pensa: e se a gente subisse por outro lado, ou virasse ela de
cabeça para baixo?
Na
Idade Média, Tomás de Aquino, inspirado em Aristóteles, descreveu
a criação como uma grande cadeia: minerais, vegetais, animais, humanos, anjos
e, acima de tudo, Deus. Era a scala naturae, a escada da natureza, onde
cada criatura tinha um lugar fixo e um valor definido. No século XX, Teilhard
de Chardin trocou a escada por uma corrente em movimento, vendo tudo como
parte de uma evolução em direção ao que chamava de Ponto Ômega, um ponto
de plenitude espiritual e material.
Só
que, na vida prática, essa lógica muitas vezes foi distorcida. A hierarquia
acabou usada para justificar desigualdades entre espécies e, pior, entre
pessoas — transformando diferença em superioridade. Aqui entra o alerta de Leonardo
Boff: toda criatura depende das demais. O mais complexo não sobrevive sem o
mais simples, e nenhum ser vive isolado. A hierarquia só faz sentido se for
entendida como interdependência.
E
é justamente aí que a contracultura entra com um sorriso irônico, olhando para
essa escada milenar e perguntando: será que ela é mesmo necessária? A
contracultura — seja no Tropicalismo que misturou berimbau e guitarra elétrica,
seja nas bandas de garagem que gravam no celular — sempre teve o hábito de
inverter, embaralhar e desorganizar ordens estabelecidas. Onde a hierarquia
tradicional diz “de baixo para cima”, a contracultura diz “lado a lado”.
No
Brasil de hoje, essa rebeldia está viva em muitos cantos:
- Agricultores que preservam sementes
crioulas como quem guarda patrimônio genético do planeta.
- Povos indígenas que usam tecnologia
para defender territórios e rituais.
- Coletivos artísticos que ocupam
espaços abandonados e os transformam em centros culturais abertos.
- Hackers que criam software livre para
que o conhecimento circule sem dono.
Essa
perspectiva desloca a hierarquia das criaturas de uma pirâmide rígida para uma
teia viva. O peixe no rio é tão essencial quanto a árvore na margem; o
cientista que estuda o rio depende do agricultor que protege a nascente. Não há
“cima” e “baixo” — há nós interligados.
No
fim, talvez a verdadeira hierarquia seja a que Paulo Freire chamaria de inédito
viável: um mundo que ainda não existe, mas que pode nascer se ousarmos
imaginar e agir. Um mundo onde a escada não serve para subir acima dos outros,
mas para construir pontes. E onde cada criatura, humana ou não, é reconhecida
não pela posição que ocupa, mas pela vida que sustenta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário