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terça-feira, 15 de julho de 2025

Amanhã e Agora

Neste finalzinho de terça-feira, estava pensando nos compromissos de amanhã, pensei cá comigo: "Amanhã, quando chegar o meu agora" é uma frase curta, mas cheia de camadas. Parece paradoxal: como o "agora" pode chegar "amanhã"? Mas é justamente nessa contradição que mora a poesia.

A gente vive fazendo planos, promessas para o dia seguinte, para segunda-feira, para o ano que vem, para “quando tudo se ajeitar”. A vida vira um eterno ensaio. É como se estivéssemos sempre esperando que o nosso verdadeiro momento chegue. Só que, quando o amanhã se torna hoje, ele ainda parece não ser o agora certo. Ainda não é o momento ideal, ainda falta alguma coisa.

Talvez porque o “agora” de verdade não seja uma data no calendário, mas uma disposição interior. Um instante de presença plena, quando a gente decide que esse é o momento. Não porque tudo está perfeito, mas porque a gente para de adiar.

Amanhã, quando chegar o meu agora, pode ser o instante em que deixo de esperar por mim mesmo.

Como disse o filósofo Kierkegaard, “a vida só pode ser compreendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para frente.” Talvez o nosso agora nunca chegue se a gente continuar o empurrando para amanhã.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Calendoscópio


Há palavras que parecem inventadas por poetas em dias de vento. “Calendoscópio” soa assim — e é uma mistura entre calendário e caleidoscópio. Um objeto imaginário que organiza o tempo com beleza instável, como se cada dia fosse um fragmento colorido girando num tubo de emoções, tarefas, encontros e memórias.

Vivemos presos a calendários: agendas, prazos, compromissos. Mas o que aconteceria se olhássemos para nossos dias como quem gira um caleidoscópio? Em vez de ver o tempo como uma linha reta, enxergaríamos padrões momentâneos, geometrias afetivas, repetições com variações sutis. Uma segunda-feira pode parecer igual à anterior, mas o humor muda, o sol nasce com outra cor, alguém nos sorri diferente.

No caleidoscópio do tempo, feriados brilham como fragmentos dourados, e há também cacos escuros: os dias pesados, as esperas longas, os “nãos” que levamos. Mas tudo se rearranja. Nada fica fixo por muito tempo. Aquilo que hoje parece um caos, amanhã pode revelar um desenho surpreendente.

O filósofo Gaston Bachelard dizia que o tempo não é contínuo, mas composto de instantes poéticos, rupturas e recomeços. O calendoscópio, então, seria o símbolo dessa percepção mais sensível do tempo: não apenas contar os dias, mas sentir seus formatos, cores e ritmos.

Em vez de marcar tudo no relógio, quem sabe a gente devesse perguntar: como foi o desenho do meu dia hoje? Houve harmonia ou desalinho? Girou suave ou estalou como vidro?

O calendoscópio não nos dá controle — nos convida à contemplação. Girar o tempo como quem brinca, ver beleza nos fragmentos e aceitar que, no fim das contas, todo dia tem sua arte secreta.

domingo, 22 de junho de 2025

Sinestesia


O real quando perde a vergonha de se misturar.

Quem nunca pensou que segunda-feira tem cor? Ou que o nome de alguém "soa verde"? Há quem jure sentir o gosto do número cinco, ou ouvir o cheiro da chuva. Os neurologistas dão um nome bonito e técnico para isso: sinestesia. Um curto-circuito sensorial, dizem. Uma ponte cruzada no cérebro.

Mas talvez seja o contrário: não um defeito, mas uma relíquia. Um traço esquecido de quando o real era um só, antes que o pensamento humano começasse a podar e separar: visão aqui, som ali, cheiro acolá.

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty alertava: o corpo não sente o mundo em canais isolados. Ele vive uma presença global do real, uma "carne do mundo" onde tato, visão e audição ainda são faces da mesma moeda. Na criança pequena — e no artista — isso é evidente: tudo é tudo ao mesmo tempo. Só mais tarde, com a domesticação do olhar, a separação artificial começa.

O mundo dos sentidos embaralhados

O poeta sente isso de modo natural. Arthur Rimbaud, na juventude ousada do século XIX, escreveu o célebre soneto das "vogais coloridas": A é preto, E é branco, I é vermelho, U é verde, O é azul. Os sentidos, livres de função prática, se reencontram na festa do absurdo.

Mas é possível que isso vá além da poesia. Para Gilles Deleuze, toda experiência sensível carrega uma potência de conexão múltipla, rizomática, sem hierarquia. O som pode ser luz. O cheiro pode ser volume. O gosto pode ser tempo. O real é esse campo de intensidades que só o pensamento domesticado transformou em departamentos estanques.

Sinestesia cotidiana: a confusão que salva

Mesmo quem não tem "sinestesia clínica" sente isso de vez em quando. Quem nunca chamou uma voz de "aveludada"? Ou disse que um olhar "pesa"? E quando dizemos que uma lembrança tem "cheiro de infância"? Não são metáforas: são escorregamentos reais entre canais sensoriais, lampejos de sinestesia existencial que resistem no cotidiano.

Vilém Flusser, filósofo nascido em Praga e radicado no Brasil, dizia que nossa técnica moderna ampliou a separação dos sentidos. A fotografia só para o olho. O rádio só para o ouvido. O telefone, a tela, o texto — todos nos treinaram para dividir a experiência. Mas a arte quer o oposto: reunião, mistura, fusão. O cinema, a dança, a performance, o happening — tudo clama pela volta da sinestesia originária. O humano não quer aparelhos separados. Quer um mundo inteiro de novo.

E se o real fosse sinestésico desde sempre?

Aqui mora uma hipótese perigosa: e se o real nunca tivesse sido feito de sentidos separados? E se nossa divisão entre som, luz, sabor, tato for só uma construção útil, uma lente artificial?

O filósofo inglês Alfred North Whitehead já sugeria isso em sua "filosofia do processo": a realidade não é feita de "coisas" sólidas, mas de experiências fluídas — eventos vibratórios que podem ser percebidos de múltiplas maneiras ao mesmo tempo. A sinestesia não seria então um defeito neurológico, mas uma fresta por onde escapa o real em estado bruto.

Por isso o artista sinestésico (ou o místico, ou o poeta) não vê "mais" que os outros — vê o que todos veem antes da poda. Antes do corte. Antes do "organograma dos sentidos" ser imposto.

Conclusão aberta: para um mundo menos tímido

Talvez seja isso o que nos falta: um mundo menos tímido, onde o som aceite ser cheiro, a palavra aceite ter temperatura, a segunda-feira confesse sua cor.

Enquanto isso não acontece, pequenas sinestesias resistem. Na poesia, na infância, no sonho, na memória de um cheiro que ilumina uma paisagem perdida. Pequenos vazamentos do real verdadeiro.

Ou, como dizia Merleau-Ponty, "o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo". E viver talvez seja — sempre — misturar.

quarta-feira, 18 de junho de 2025

Hipérbato

 

Vamos falar de quando a língua pensa diferente de nós!

Sabe aquele momento em que a gente atropela a fala? Quando a frase sai torta, fora de ordem, e depois já era — porque palavra dita é como pedra atirada: impossível voltar atrás. O que sobra é o ouvinte tentando entender aquele som estranho, como quem monta um quebra-cabeça no ar. Isso acontece porque a língua, de vez em quando, resolve andar de lado, fazer um caminho esquisito — e nasce o tal do hipérbato: essa mania velha da linguagem de embaralhar a ordem das palavras. "De saudade morreu o velho marinheiro" — e não "O velho marinheiro morreu de saudade". Por que falar assim?

Não é só truque de poeta, nem preciosismo de livro antigo. O hipérbato revela algo do nosso próprio pensamento: esse jeito meio embolado, meio torto, de sentir antes de organizar, de querer dizer muita coisa ao mesmo tempo — como quem tropeça nas próprias ideias. Linguistas, psicólogos e até filósofos deram atenção a esse fenômeno. Talvez porque nele mora um segredo bonito: o de que nem sempre pensamos em linha reta.

Vamos tentar entender por que, às vezes, a fala pula etapas — e o que isso diz da nossa mente.

Hipérbato: quando a língua pensa diferente de nós

Às vezes alguém fala de um jeito estranho — e o ouvinte estranha também: "Por que ele fala assim?". É o efeito do hipérbato, essa figura de linguagem que desloca a ordem natural das palavras e, de algum modo misterioso, nos prende a atenção. "Grande é o mistério da vida" — e não "O mistério da vida é grande". Por quê? Porque quem fala assim quer que o “grande” venha primeiro no pensamento, mesmo que venha depois no dicionário.

O nome vem do grego: hyperbaton, que quer dizer "transposição". Desde a Antiguidade já se percebia esse prazer de mexer na ordem das coisas para que o pensamento ganhasse ritmo, surpresa ou impacto. Camões fazia isso. Machado de Assis fazia isso. E, sem perceber, o garçom que diz "A mesa três já pagou, ela" também faz — porque algo no cérebro pede esse "desarranjo" para tornar a fala mais expressiva.

Mas há mais aqui do que estilo. Há um funcionamento mental sendo revelado. Como explica Roman Jakobson, linguista russo que aproximou poesia e linguagem cotidiana, toda fala humana oscila entre duas forças: a da seleção (escolher palavras) e a da combinação (colocar palavras em ordem). O hipérbato brinca com essa segunda força — ele mistura o eixo do tempo e o eixo do espaço na frase. O que devia vir depois vem antes, e vice-versa. É uma microdesordem que gera significado novo.

Do lado da psicologia, isso também se explica. O cérebro adora padrões previsíveis — sujeito, verbo, objeto — porque gastam menos energia. Quando o padrão é quebrado, há uma microtensão cognitiva: o ouvinte "acorda", precisa reorganizar o sentido da frase. É como se o hipérbato dissesse: "Ei, preste atenção. Não é uma frase qualquer". William James, o grande psicólogo da atenção, já dizia: só percebemos o que varia; o resto escapa à consciência.

Lacan daria um sorriso: para ele, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, mas não qualquer linguagem — uma linguagem de deslocamentos, condensações, rupturas de ordem. O hipérbato, nesse sentido, é uma brecha onde o inconsciente vaza na fala cotidiana. Quando alguém diz "Feliz, ele não era" está dizendo mais do que a gramática permite — está dizendo também o modo torto e pulsante como o desejo se organiza.

Maurice Merleau-Ponty, filósofo da percepção, talvez acrescentasse: essa inversão é também corporal. O hipérbato desloca o corpo da frase, quebra sua linearidade, como um movimento inesperado no espaço. Por isso o leitor ou o ouvinte sente fisicamente a diferença — uma torção da língua que ecoa no corpo que escuta.

E tem ainda o lado da memória. Os poetas antigos sabiam: o que quebra a ordem fica mais fácil de lembrar. “Inocente é quem não tem culpa”, dizia a poesia latina — e o jogo da inversão fixava a ideia na mente. Publicitários fazem o mesmo hoje: "Porque você merece" soa mais impactante do que "Porque merece você". A inversão gruda no ouvido.

Talvez por isso o hipérbato nunca desapareça, mesmo nas falas banais: ele é um modo de marcar a palavra com intenção, emoção, singularidade. Quem fala assim não só informa — sugere, insinua, provoca.

No fim das contas, é como se a própria língua quisesse pensar diferente de nós. Ou melhor: como se nossa alma, ao falar, não suportasse ser tão direta quanto a lógica exige. Ela se curva, gira, troca de lugar — porque as ideias também chegam tortas, desencontradas, vivas.

Como dizia o velho Fernando Pessoa:

"Tudo é disperso, tudo é variação..."

Até a ordem das palavras. E talvez seja justamente nisso que mora o sentido mais verdadeiro da fala humana: no inesperado lugar onde a linguagem e o pensamento se cruzam — e tropeçam — um no outro.

quarta-feira, 5 de maio de 2021

Rilke num romance único: Prosa, Poesia e Filosofia

 


Rainer Maria Rilke foi um poeta de língua alemã do século XX mais conhecido no Brasil, é um poeta que exerceu forte influência sobre diversos autores e, inclusive, filósofos como Jean-Paul Sartre. O único romance escrito pelo poeta são “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, são reconhecidos por muitos como uma das inspirações para o movimento existencialista e expressionista.

Para quem leu Nietzsche sabe o quanto ele influenciou a obra de Rilke, inclusive eles tiveram uma mesma musa como amor em suas vidas: Lou Salomé, uma jovem mulher com pensamentos de vanguarda, uma mulher que viveu sua vida com extrema liberdade, além do que era comum na época; ela foi um ícone para a mulher livre do século XX; ela também conheceu Freud e imediatamente se viciou em psicanálise; através destes relacionamentos ela se tornou psicanalista e seu pensamento combinou psicanálise freudiana com a filosofia de Nietzsche, mas aqui já é outra história.

O livro é uma mistura heterogênea de prosa, poesia, filosofia, com conteúdo denso, para quem já leu algo de Sartre como A náusea terá maior desenvoltura na leitura. Sua escrita parece fluir dentro de um fluxo mental, discorrendo diálogos com os personagens sem prévia apresentação dos mesmos, pois a construção tem sua força nas reflexões filosóficas complexas tais como: a busca pela sua individualidade, o que é a vida, a morte, a capacidade de enxergar seus sofrimentos e angustias – contem também metáforas instigantes.

O livro é um romance autobiográfico, escrito num período que ele viveu na bela Paris, descreve cenas com beleza e sensibilidade de um poeta, vale a pena, é um livro curto, porem sua densidade nos exige uma leitura atenta. Ele deixa claro sua paixão pela leitura e escrita, não tem como não ficar impressionado com a apologia pela escrita.

Trechos do livro:

"[...] não temos o direito de abrir um livro se não nos comprometemos a ler todos. A cada linha tirávamos um pedaço do mundo. Antes dos livros ele estava intacto, e talvez esteja inteiro outra vez depois deles.

– Na vida não há classes para iniciantes; o que se exige de uma pessoa logo é sempre o mais difícil.

Quando se fala do solitário, sempre se pressupõe demais. Acredita-se que as pessoas saibam do que se trata. Não, não sabem. Nunca viram um solitário, apenas o odiaram sem conhecê-lo. Elas foram os vizinhos que o irritaram e as vozes no quarto ao lado que o tentaram. Açularam os objetos contra ele para que fizessem barulho e falassem mais alto que ele. As crianças se aliaram contra ele quando era delicado e criança e, à medida que crescia, crescia contra os adultos. Farejaram-no em seu esconderijo como se ele fosse um animal que pode ser caçado, e durante sua longa juventude não houve período em que a caça fosse proibida. E quando não se deixava esgotar e fugia, elas gritavam contra aquilo que provinha dele e diziam que era feio e suspeito. E se não dava ouvidos, elas se tornavam mais claras e comiam sua comida, esgotavam seu ar, cuspiam na sua pobreza para que se tornasse repulsiva para ele. Elas o difamavam como a um ser contagioso e atiravam pedras atrás dele para que se afastasse mais depressa. E o velho instinto delas tinha razão: pois ele era realmente seu inimigo. Quando, porém, ele não levantava os olhos, elas refletiam. Suspeitavam que faziam a sua vontade ao fazer tudo aquilo; que o fortaleciam em sua solidão e o ajudavam a separar-se delas para sempre. E então mudavam de atitude e empregavam o último recurso, o mais extremo, a outra resistência: a fama. E com um barulho desses, quase qualquer pessoa levanta os olhos e se distrai.

Rilke é o mesmo autor de Cartas a Um Jovem Poeta, um livro pequeno muito interessante, também vale a pena ler.

Fonte:

Rilke, Rainer Maria, 1875-1926. Os cadernos de Malte Laurids Brigge; tradução e notas de Renato Zwick – Porto Alegre, RS: L&PM, 2010 208p