Estava num daqueles momentos em que tudo parece parar — uma reunião longa, onde ninguém ousava mais falar, ou talvez uma conversa entre amigos que, de repente, esgotou as palavras. E foi ali, nesse vazio de vozes, que percebi: o silêncio é uma linguagem também. Mas qual linguagem? E o que ela diz, quando ninguém está dizendo nada?
Essa
sensação me levou de volta a dois filósofos que, curiosamente, trataram da
linguagem em extremos opostos do pensamento: Ludwig Wittgenstein e Martin
Heidegger. Um buscava a clareza como um jardineiro paciente que poda os galhos
tortos da fala. O outro cavava a terra com as mãos nuas, atrás de uma raiz mais
funda — o ser, que fala antes da fala. No centro de ambos, lá estava ele: o
silêncio, como uma espécie de verdade que escapa por entre as palavras.
I.
O silêncio como fronteira da linguagem
Wittgenstein,
no final do Tractatus Logico-Philosophicus, diz: “Do que não se pode
falar, deve-se calar.” É uma das frases mais citadas da filosofia moderna. Mas
o que significa esse calar? Não é uma desistência — é um reconhecimento. Há
limites para o que podemos dizer com sentido. O silêncio, nesse caso, marca a
borda do mundo, onde as proposições lógicas já não funcionam.
Heidegger,
por outro lado, não vê o silêncio como uma falha da linguagem, mas como seu
habitat natural. Em Ser e Tempo, ele sugere que o silêncio não é o
oposto do discurso, mas uma forma de escuta mais profunda. Quem silencia
verdadeiramente está mais atento ao ser do que aquele que fala sem parar. É um
silêncio carregado de escuta, de espera, de abertura.
Assim,
para Wittgenstein, o silêncio é um freio; para Heidegger, é uma fonte.
II.
Linguagem como morada e como ferramenta
Wittgenstein
percebe que falamos em jogos. Os "jogos de linguagem" são atividades
humanas — pedir, mandar, agradecer, contar piadas. A linguagem não tem essência
fora desses usos. O problema não está no que dizemos, mas no como. Quando
usamos a palavra “verdade”, por exemplo, em que jogo estamos? Dizer “é verdade
que vai chover” não é o mesmo que “é verdade que ela me ama”. O jogo muda, o
critério de verdade também.
Heidegger
vê a linguagem como “a casa do ser”. Não jogamos com ela: moramos nela. E o que
mora nela não é apenas o que se diz, mas o que se revela. A linguagem, então, é
revelação — aletheia, desvelamento. A verdade não é correspondência, mas
desocultação.
Wittgenstein
quer desfazer os mal-entendidos da linguagem para dissolver os pseudo-problemas
filosóficos. Heidegger quer mergulhar na linguagem para escutar o chamado do
ser. Em Wittgenstein, a verdade é questão de uso bem feito; em Heidegger, é
questão de abertura ao que se mostra.
III.
A verdade como silêncio ativo
E
então, quando nos calamos diante de algo — diante da beleza de um pôr do sol,
do mistério de uma perda, ou mesmo da complexidade de um dilema moral — não
estamos fugindo da verdade. Estamos, talvez, deixando que ela se manifeste sem
a violência da explicação.
O
silêncio, nesses momentos, não é ausência. É presença intensa. É o momento em
que não ousamos dizer, mas sentimos que algo é verdadeiro. Verdade que não cabe
numa proposição, nem num jogo de linguagem, mas que também não se perde na
névoa do ser. É uma verdade vivida, não dita.
Talvez
seja esse o ponto de contato entre os dois filósofos. Heidegger abre espaço
para o ser falar por si. Wittgenstein mostra que, quando as palavras se
esgotam, não é o fim do sentido — é o início de outra forma de compreensão.
Volto
ao meu silêncio, agora com mais cuidado. Penso em como ele pode ser uma
resposta, um protesto, um luto, uma reverência. O silêncio fala. E às vezes,
como dizia Wittgenstein, ele fala justamente porque as palavras já não bastam.
Heidegger talvez acrescentasse: é no silêncio que o ser nos sussurra.
Talvez
a verdade, afinal, more no espaço entre o que conseguimos dizer e aquilo que
ousamos silenciar.
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