Quando não ver é escolher não saber
Tem
horas em que a gente finge que não viu. Passa batido por uma cena injusta, uma
palavra atravessada, um silêncio que grita. “Deixa quieto”, dizemos, como se a
quietude não fosse, muitas vezes, o berço da violência. Há uma diferença entre
não ver e não querer ver — e é nessa fresta que se instala um tipo de cegueira
escolhida, uma negação da realidade que, com o tempo, se torna hábito.
Chamemos
isso de denegação, como propôs Freud: o sujeito reconhece o que
é, mas recusa-se a aceitá-lo como verdadeiro. Vê, mas diz a si mesmo que não é
bem assim. Não é ignorância pura, é um mecanismo de defesa, uma forma de manter
intacta a imagem que temos de nós mesmos, do mundo, das pessoas próximas. A
denegação protege — mas também anestesia, torna o real um borrão onde o
incômodo é suavizado até se dissolver.
O
filósofo francês Jacques Rancière, ao refletir sobre o partilhamento
do sensível, nos ajuda a pensar esse fenômeno. Segundo ele, aquilo que
percebemos como real, visível ou audível está condicionado por uma partilha —
uma divisão do que pode ser dito, visto, sentido. A cegueira, nesse contexto,
não é ausência de visão, mas resultado de um regime de percepção. Não vemos o
que não fomos ensinados a ver. Ou pior: escolhemos não ver o que ameaça nossa
ordem interna, emocional ou política.
No
cotidiano, isso aparece nas pequenas covardias: a piada preconceituosa que
deixamos passar, a solidão do colega de trabalho que ignoramos, o comportamento
autoritário que justificamos como “jeito dele”. A denegação permite que
continuemos a funcionar, a produzir, a sorrir. Mas ela cobra seu preço: a
realidade volta, quase sempre, pelo lado do sintoma.
Talvez
o maior gesto de coragem hoje seja reaprender a ver — e aceitar o que se vê.
Porque a lucidez, ainda que dolorosa, pode ser libertadora. Como diz a
escritora portuguesa Lídia Jorge: “a cegueira é a maneira como o mundo
escolheu não ver a sua própria desordem”.
Então,
diante de cada escolha de ignorar, vale perguntar: isso é cegueira — ou apenas
mais uma denegação disfarçada de paz?
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