O Despertar que Desnuda o Tempo: Ensaio Filosófico sobre Tempo de Despertar, de Oliver Sacks
Resumo
introdutório:
Em
Tempo de Despertar (1973), o neurologista britânico Oliver Sacks narra a
extraordinária experiência clínica com pacientes vítimas da encefalite
letárgica, uma misteriosa epidemia que os mergulhou, durante décadas, num
estado catatônico sem saída. O advento do medicamento L-DOPA, no fim dos anos
1960, trouxe um aparente milagre: o retorno súbito desses indivíduos à
consciência, à linguagem, ao movimento. Mas o que prometia ser redenção
revelou-se, muitas vezes, tragédia: o despertar foi também um encontro cruel
com o tempo perdido, com um mundo irreconhecível e com a fragilidade do próprio
"eu".
O
livro é mais que um relato médico: é uma meditação viva sobre o enigma da
existência, do tempo, da identidade — uma obra que ultrapassa a neurologia e
toca a metafísica.
Ensaio
filosófico:
I.
Despertar não é acordar: é nascer de novo num mundo estranho.
Sacks
nos convida a uma ideia incômoda: o despertar radical não é retorno, é
estranhamento. Quem desperta após quarenta anos de ausência não reencontra seu
mundo: encontra outro mundo — outro corpo, outro tempo, outra história. O
"milagre" é, em parte, uma violência.
Aqui,
o despertar se aproxima do conceito de unheimlich (estranho-familiar) de
Freud: algo que deveria ser íntimo — meu corpo, meu tempo — torna-se
irreconhecível. Os pacientes de Sacks não voltam à vida que conheciam;
despertam num mundo que os traiu com o envelhecimento, com a morte dos entes
queridos, com o progresso tecnológico que os excluiu. A continuidade do eu foi
quebrada. Quem são eles agora?
II.
O tempo não passa — ele devora.
O
livro desmascara um dos grandes consensos do senso comum: o de que o tempo
"passa" suavemente, de forma linear. Não: o tempo rói, consome,
altera os contornos do real e do imaginário. Quando os pacientes voltam à
consciência, não o fazem no tempo em que adormeceram: o relógio do mundo não
esperou.
Henri
Bergson já advertia: o tempo vivido (durée) não se
mede em números, mas em fluxo de consciência. Os pacientes de Sacks perderam
sua durée pessoal; suas consciências congelaram enquanto o mundo externo
seguiu outro ritmo. O abismo entre esses dois tempos produziu monstros
existenciais: corpos envelhecidos com almas jovens, espíritos perdidos num
presente que não reconhecem.
III.
A identidade não é um dado — é uma narrativa que o tempo costura.
O
maior escândalo filosófico de Tempo de Despertar é este: não existe
"eu" fora da história que tece um sentido para o tempo vivido. Os
pacientes acordaram sem narrativa — suas biografias tinham um buraco negro de
décadas. Como se reconstruir sem lembrança, sem continuidade? A ruptura é
tamanha que a própria noção de "pessoa" se desfaz.
Paul
Ricoeur escreveu que "somos o tempo contado,
narrado". O sujeito que desperta sem história é um estranho para si mesmo
— é um corpo presente sem enredo passado. A L-DOPA reanimou músculos e
sinapses, mas não devolveu a ponte do sentido. Por isso muitos adoeceram de
angústia e desespero: não sabiam mais quem eram.
IV.
O milagre moderno é o fracasso metafísico.
A
medicina realizou o milagre técnico: devolveu o movimento e a fala. Mas a
metafísica do sentido — esse campo onde a alma encontra seu lugar no tempo e no
mundo — falhou. O preço do despertar foi o colapso do sentido.
Este
paradoxo é um alerta para toda utopia tecnológica: não basta restaurar a função
biológica; é preciso restaurar o enraizamento no mundo, o pertencimento
simbólico. Sacks, sábio humanista, percebeu isso: seu livro não celebra uma
vitória da ciência — lamenta uma derrota da alma.
V.
O verdadeiro despertar é filosófico, não neurológico.
A
lição secreta de Tempo de Despertar é que todos nós corremos o risco de
viver letargicamente — mesmo saudáveis. Quem segue hábitos mecânicos, quem
repete papéis vazios, quem não interroga seu lugar no tempo... está adormecido
no existir.
O
despertar real, diz Sacks sem dizê-lo, é o despertar filosófico: o instante em
que o sujeito vê a estranheza da própria vida, percebe o enigma do tempo e ousa
perguntar: "Quem sou eu agora? Para onde fui nos anos que passaram?".
Esse despertar pode ser doloroso — mas é o começo de uma vida consciente.
Aí
vai uma sugestão de leitura complementar: Um Antropólogo em Marte
Para
aprofundar essa jornada entre neurologia e existência, vale a leitura do também
brilhante Um Antropólogo em Marte (1995), onde Sacks retrata sete
histórias clínicas que desafiam a ideia de normalidade.
Em
vez de tragédias, muitos dos relatos de Um Antropólogo em Marte são
adaptações criativas à diferença: um pintor que perde a capacidade de ver cores
e reinventa seu mundo em tons de cinza; um cirurgião com síndrome de Tourette
que encontra na medicina uma forma de domar seus impulsos; um autista que
interpreta a vida como se fosse, de fato, um observador de outro planeta.
Se
Tempo de Despertar mostra o drama do retorno à vida sem enredo, Um
Antropólogo em Marte apresenta a beleza de construir novas narrativas a
partir da diferença. Ambos os livros são espelhos distorcidos da condição
humana — e, juntos, nos fazem perguntar não "o que é normal?", mas "o
que é ser humano diante da falha, da adaptação e da consciência?"
Concluindo:
O drama de ser tempo
Tempo
de Despertar revela uma verdade incômoda: não somos
senhores do tempo — somos feitos de tempo. Ele nos atravessa, nos molda, nos
perde e nos reencontra. Não há cura médica para isso. Mas há uma vigilância
filosófica possível: aquela que aceita o tempo como abismo e ainda assim
inventa sentido.
Como
disse o pensador brasileiro Vilém Flusser:
"Viver
é buscar sentido no sem-sentido do tempo."
Os
pacientes de Sacks pagaram o preço extremo dessa busca. E nós, que lemos sua
história, somos também convidados a acordar.
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