A intolerância religiosa é um daqueles fenômenos que parecem absurdos quando observados de fora, mas que se manifestam com uma força assustadora na vida cotidiana. O que faz com que alguém não apenas discorde de uma crença, mas queira destruí-la ou impedir que outros a sigam? Se a fé é algo tão pessoal, por que ela gera conflitos coletivos tão intensos? Para entender essa questão, precisamos explorar não apenas os aspectos sociais e históricos, mas também a relação entre identidade, poder e o medo do desconhecido.
A
Raiz Filosófica da Intolerância Religiosa
Desde
a antiguidade, a religião tem sido uma das principais forças estruturantes da
sociedade. Filósofos como Platão e Aristóteles discutiam a relação entre
religião e política, enquanto na Idade Média, Santo Agostinho e Tomás de Aquino
buscavam conciliar fé e razão. O problema da intolerância, no entanto, nasce do
momento em que a crença religiosa passa a ser vista como uma verdade absoluta e
inquestionável. Quando uma religião se torna hegemônica, há uma tendência a
excluir ou perseguir quem não compartilha da mesma visão de mundo.
Baruch
Spinoza, no século XVII, argumentava que a intolerância religiosa decorre da
tentativa das instituições de controlar o pensamento humano. Em seu
"Tratado Teológico-Político", ele defendeu a liberdade de crença e
alertou para os perigos da fusão entre poder religioso e político. Para ele, a
verdadeira espiritualidade não deveria ser imposta, mas sim fruto da reflexão
individual.
Já
Jean-Paul Sartre, dentro do existencialismo, apontava que as crenças são, em
grande parte, construções humanas, e que a intolerância nasce do medo de
confrontar a liberdade do outro. Em outras palavras, quando alguém rejeita a
religião alheia de forma violenta, o que está em jogo não é apenas a fé, mas a
insegurança sobre a própria identidade.
O
Medo do Outro e a Construção da Identidade
A
intolerância religiosa frequentemente se manifesta como uma aversão ao
desconhecido. No cotidiano, isso se traduz em olhares tortos para quem veste um
turbante, para um centro de umbanda sendo atacado ou para a insistência em
"converter" quem segue outro caminho espiritual. Quando uma crença
diferente se apresenta, ela desafia nossas certezas e nos obriga a pensar se
realmente temos razão. Para muitos, essa dúvida é insuportável.
O
filósofo brasileiro Milton Santos observava que a globalização cria um
paradoxo: ao mesmo tempo em que nos aproxima de diferentes culturas e crenças,
também gera reações de fechamento e resistência. A intolerância religiosa pode
ser vista, então, como uma resposta defensiva diante de um mundo cada vez mais
plural. Em vez de lidar com a complexidade, opta-se pela rejeição.
Superar
a Intolerância: Um Exercício de Alteridade
Se
a intolerância nasce do medo e da insegurança, a saída para esse problema deve
envolver o reconhecimento da alteridade. Emmanuel Levinas argumentava que o
encontro com o outro é a base da ética. Ou seja, só podemos agir de forma justa
quando reconhecemos no outro um ser humano tão legítimo quanto nós mesmos. Isso
exige um esforço consciente para ouvir, dialogar e respeitar.
No
Brasil, a intolerância religiosa ainda é um desafio, especialmente contra
religiões de matriz africana, que sofrem preconceito histórico. Combater esse
problema requer não apenas leis e políticas públicas, mas uma mudança cultural
que passe pelo sistema educacional e pela formação de uma mentalidade aberta ao
diálogo.
A
intolerância religiosa é um problema filosófico, social e ético que nasce da
rigidez das certezas, do medo do diferente e da instrumentalização da fé para
fins de poder. O caminho para superá-la passa pela valorização do pensamento
crítico e da empatia. Como disse Voltaire, "posso não concordar com o que
você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo". Talvez
seja hora de aplicarmos esse princípio não apenas à liberdade de expressão, mas
também à liberdade de crença.