Evidências do Que Ainda Não Ocorreu!
Há
dias em que a gente acorda com a estranha sensação de que "algo" está
para acontecer. Não há nenhuma mensagem no celular, nenhum e-mail suspeito,
nenhum recado no espelho do banheiro. E, mesmo assim, o corpo sabe. O
pensamento lateja de leve, o olho desvia do caminho habitual, e o mundo parece
inclinar-se para o lado de um futuro que ainda não chegou — mas que já se
anuncia em pequenos sinais.
Será
possível encontrar evidências do que ainda não aconteceu? Ou melhor: será que o
futuro deixa rastros no presente, tal como o cheiro da chuva que ainda não
caiu?
A
lógica comum diria que não: que o futuro, por definição, não existe e,
portanto, não pode se manifestar. Mas nossa experiência cotidiana desmente esse
raciocínio puro. O corpo antecipa um tropeço segundos antes do sapato
escorregar; a intuição avisa que aquele velho amigo vai ligar, e ele liga
mesmo. Não são dons mágicos — são microevidências: gestos, ritmos, silêncios,
cheiros, vibrações que escorregam pelas frestas do tempo, revelando o que virá.
Na
vida prática, essas evidências do não-ocorrido aparecem sem cerimônia. O
mecânico que ouve um som diferente no carro e já prevê a pane; o professor que
sente, pela forma como o aluno fecha o caderno, que ele não voltará na próxima
aula; a mãe que sabe, só pelo silêncio do filho, que ele esconde alguma coisa
importante. O futuro não é um desconhecido absoluto: ele é tecido a partir de
fragmentos já visíveis.
Mas
é aqui que entra uma provocação filosófica decisiva: David Hume, no
século XVIII, já alertava que o hábito é o grande criador de ilusões sobre o
futuro. Para Hume, não temos garantia alguma de que o amanhã repetirá o
hoje — apenas uma tendência psicológica, fruto da repetição, de esperar que o
sol nasça novamente, que a água apague o fogo, que as pedras caiam se largadas
no ar. Para ele, toda previsão do futuro é um ato de fé disfarçado de certeza,
pois a conexão necessária entre causa e efeito nunca é observável — só suposta.
Assim,
quando achamos ver evidências do que ainda não ocorreu, talvez estejamos apenas
projetando velhos padrões em situações novas. O mecânico ou a mãe não têm
acesso a um futuro real: eles apenas aplicam memórias passadas a um presente
estranho. E no entanto — e este é o paradoxo — muitas vezes acertam. Hume nos
adverte: o futuro é uma aposta, não um conhecimento.
As
ideias de Hume me remetem a pensar sobre conselhos sobre causa e consequência,
seja para um filho quando aconselhamos a afastar-se das más companhias, do
amigo que tem uma queda pela bebida alcoólica, e assim por diante, presumimos
que algo dará errado e quando dá, percebemos o vislumbre da lógica do cotidiano
em mais um vislumbre do vazamento temporal.
Mas
nem só de razão vive o pensamento. Aqui entra uma outra chave possível, vinda
da psicologia profunda de Carl Gustav Jung. Para Jung, o universo não é
só feito de causas e efeitos mecânicos, mas também de sentidos ocultos, de
ligações simbólicas. Seu conceito de sincronicidade descreve justamente
esses casos em que um acontecimento no mundo exterior coincide de modo
significativo com um estado interior da alma — sem relação causal aparente.
Quando
alguém sonha com um velho amigo e ele, inesperadamente, telefona no dia
seguinte; quando uma palavra esquecida aparece repetida em vários lugares num
mesmo dia — não são previsões baseadas em probabilidade, mas manifestações de
um campo simbólico maior, talvez do próprio inconsciente coletivo. Para Jung,
o futuro não é totalmente separado do presente: ele já pulsa em símbolos,
arquétipos, imagens que surgem nos sonhos, nas intuições, nos mitos.
Assim,
enquanto Hume nos convida à prudência — lembrando que toda expectativa
futura repousa em crença costumeira — Jung abre uma porta para o
mistério: talvez certos fragmentos do futuro escapem, por vias simbólicas, para
dentro do agora. O corpo sabe o que a razão não alcança. O acaso pode não ser
tão cego quanto parece.
O
filósofo brasileiro Vilém Flusser dizia que o homem é um "animal
projetivo": vive sempre adiante de si mesmo, sempre jogando sentido para
frente. O futuro não é um lugar distante, mas uma parte de nós mesmos que já
tenta emergir. Por isso as evidências do que não ocorreu estão por toda parte —
na palavra mal pronunciada, no encontro casual, na hesitação de um olhar.
O
perigo, claro, é forçar o sentido. Ver presságios onde só há ruído, construir
certezas sobre incertezas. Mas o risco maior talvez seja o oposto: ignorar os
sinais do que vem. Desprezar o aviso do corpo, o alerta da alma, o indício que
se repete sem motivo aparente.
Afinal,
como ensinava Heráclito: “O deus cuja morada é o oráculo de Delfos nada
diz nem oculta, mas sinaliza”. O futuro também sinaliza — discreto, modesto,
mas insistente. Cabe a nós treinar os olhos, o ouvido, o coração, para notar
suas evidências invisíveis.
Talvez
o que ainda não ocorreu já esteja, de certo modo, acontecendo.
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