Whitehead e o mundo em movimento!
Há
uma ilusão muito comum no modo como lidamos com o mundo: acreditamos que as
coisas são. A cadeira é cadeira, o rio é rio, eu sou eu. Essa ideia parece tão
sólida quanto o concreto de uma calçada. Mas para Alfred North Whitehead,
filósofo britânico, um dos filósofos mais originais do século XX, essa visão do
mundo está enganada desde o início. O mundo não é feito de “coisas” — é feito
de processos.
Whitehead
não era só filósofo; antes disso, foi matemático e trabalhou com Bertrand
Russell na famosa obra Principia Mathematica. Mas foi na maturidade
que ele deu um salto surpreendente para a metafísica, fundando o que hoje
chamamos de Filosofia do Processo. Uma filosofia que não vê o mundo como um
estoque de substâncias estáticas, mas como um fluxo incessante de eventos,
relações e transformações.
Tudo
o que existe... acontece
Na
visão de Whitehead, até mesmo uma pedra não é algo fixo. Ela é uma sequência de
processos energéticos, uma pequena narrativa cósmica que, lenta como as eras
geológicas, ainda assim é mudança. O mesmo vale para você, para mim, para o som
de um violão no fim da tarde ou o cheiro de pão saindo do forno.
Aliás,
basta pensar no café da manhã. Parece um momento simples, mas não é. A mesa
posta não existe como um “bloco”; ela é o resultado de mil ações: a plantação
do café em algum país distante, o transporte até o supermercado, o seu gesto de
acender a chaleira, a memória do sabor que você gosta, a escolha da xícara
preferida. O café da manhã é um acontecimento — uma rede viva de eventos que
vieram de longe no espaço e no tempo.
Outro
exemplo: uma conversa no trabalho. Você chega tenso de casa, alguém sorri de
leve, você relaxa, diz uma piada, o outro responde, vocês se entendem melhor.
Não existe “você fixo” e “colega fixo”. Existe uma dança de emoções, intenções,
palavras. Mesmo os silêncios têm efeito. O instante de agora já carrega ecos do
que aconteceu antes — a discussão de ontem, a gentileza da semana passada — e
prepara o campo para o que virá. É puro processo.
Ou
então um passeio pela rua. As lojas mudaram a vitrine, a padaria da esquina
fechou, um prédio novo surgiu onde havia uma casa antiga. Você mesmo mudou —
anda mais devagar, olha para o céu, pensa em outras coisas. Até o caminho para
casa não é o mesmo de ontem, porque você não é mais o mesmo de ontem. O que existe
é esse fluxo onde cidade, corpo e memória se misturam.
O
Deus de Whitehead
Outro
ponto notável é a visão de Deus nessa filosofia. Para Whitehead, Deus não é o
criador de um mundo pronto e acabado, mas parte do processo cósmico. Deus
mantém possibilidades abertas, uma espécie de “lure” — uma sedução para que o
mundo tenda à beleza, à harmonia, à intensidade. Mas o desfecho de cada momento
é decidido no processo, e não decretado de cima. Isso abre espaço para o acaso,
para o risco, para a criatividade genuína do universo.
Na
prática? Quando alguém resolve largar um emprego seguro para abrir uma pequena
livraria de bairro, ou quando um vizinho planta flores num canteiro abandonado,
algo do possível se torna real — e o universo inteiro muda um pouco. Para
Whitehead, Deus sussurra essas possibilidades de harmonia, mas a escolha final
está no fluxo das decisões humanas e cósmicas.
O
real é relação
Essa
filosofia desmonta a ideia de que as coisas existem isoladamente. Nada é em si;
tudo é em relação. Até o celular na sua mão agora é o resultado de processos —
de tecnologia, de desejo de comunicação, de história econômica, de consumo. A
própria bateria carrega energia que veio de usinas distantes. Até o descanso
noturno é um processo: corpo, respiração, sonho, esquecimento.
Quando
você encontra um velho amigo na rua, esse encontro não é a soma de duas
“coisas”. É um evento novo, cheio de memórias de infância, de mudanças de vida,
de expectativas futuras. Cada olhar troca experiências, cada frase é carregada
de tudo o que vocês já viveram. O real é sempre relação.
O
mundo como obra inacabada
Em
Whitehead, o universo não é uma máquina que funciona; é uma obra de arte
inacabada. Algo que se faz, se desfaz e se refaz o tempo todo. E nós, humanos,
somos parte desse processo criativo — não como espectadores, mas como
co-autores. Por isso, cada escolha nossa acrescenta um fio à trama do real.
Henrique
de Lima Vaz dizia que a existência é uma tarefa: ela
nunca está dada, sempre está por fazer. Essa é uma intuição bem próxima do
pensamento processual de Whitehead. O mundo não é pronto: ele espera, a cada
instante, ser tecido de novo.
Na
vida cotidiana isso significa que nenhuma situação é um beco sem saída
absoluto. Aquele relacionamento que parece ter esgotado o sentido, aquele
trabalho que já não motiva, podem — com imaginação, risco e coragem — ser
recriados, refeitos, transfigurados. O processo não se fecha.
O
que aprendemos com Whitehead?
Que
viver é participar de um fluxo. Que nada é fixo — nem o mundo, nem você. Que o
real se faz de encontros e relações, não de substâncias isoladas. Que até o
almoço simples de terça-feira carrega a história do universo. E que o futuro
não está escrito: ele é possibilidade aberta, sempre à espera de um novo gesto
criativo.
Talvez
por isso viver seja tão inquietante e tão belo: porque tudo pode ser, tudo
ainda está sendo.
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