Outro dia, me peguei pensando em como a gente consegue transformar coisas simples em dilemas existenciais. Era só para escolher uma pizza, mas viramos uma assembleia de crise. Um queria marguerita, outro vegetariana, e teve quem quisesse inventar uma de strogonoff (!). A cena toda parecia banal, mas ali, naquele conflito de gostos e silêncios, estava estampada a complexidade humana. Porque, no fundo, não é sobre a pizza — é sobre o que a gente quer, o que a gente cede, e o que a gente esconde. Somos seres complicados, e não só no cardápio.
Por
que somos assim? Por que pensamos tanto, duvidamos tanto, sentimos demais,
desejamos o que nos falta e, às vezes, o que nos destrói? Não bastava viver? Os
animais parecem tão resolvidos: um cachorro não faz análise existencial às três
da manhã. Mas a gente, sim. A gente complica.
Essa
complicação talvez não seja defeito. Talvez seja constituição. Como diria o
filósofo Emmanuel Levinas, “o ser humano é aquele que é responsável antes
de saber.” A gente sente culpa antes de entender o motivo, se emociona antes de
racionalizar. Nossa consciência não é só uma ferramenta para organizar a
realidade — é também um espelho torto que nos reflete com atraso e distorção.
Como
disse Sartre, "o homem está condenado a ser livre". Condenado,
veja bem — não agraciado. Porque a liberdade, para o existencialista, não é uma
leveza de voar, mas um peso de decidir. Carregamos o fardo de sermos autores da
própria existência, sem roteiro prévio ou manual de instruções. Nascemos sem
essência, e tudo o que somos será construído nas escolhas que fazemos — mesmo
aquelas que evitamos. E é nessa vertigem da liberdade que mora a nossa
complicação mais radical: temos que escolher quem ser, sem garantias, sem desculpas.
Ao contrário das coisas, que simplesmente são, nós precisamos nos
fazer. E talvez esse seja o abismo mais profundo: não há essência esperando
ser descoberta, só o vazio que precisamos preencher com atos, quedas,
tentativas, e a permanente possibilidade de nos reinventarmos. A complexidade
humana não é defeito — é o preço da liberdade.
Mas
o budismo, curioso em sua suavidade, sussurra um contraste profundo. Thich
Nhat Hanh nos lembra que “você não é uma entidade separada. Você é como uma
folha em uma árvore. Quando a folha entende que faz parte da árvore, ela para
de sofrer.” Isso é radical: o sofrimento nasce da ideia de separação, de ego
endurecido, de um "eu" que quer ser único e eterno. Enquanto o
existencialismo nos lança ao peso de criar o próprio sentido, o budismo
dissolve a rigidez do “eu” e aponta para a paz que surge quando deixamos de
querer controlar tudo. Assim, ser humano é também reconhecer que não somos tão sólidos
quanto pensamos — somos corrente, não pedra. E nessa fluidez, talvez esteja uma
outra forma de liberdade: a de não ter que sustentar um eu fixo o tempo todo.
Um alívio, não?
Por
isso, podemos rir e chorar da mesma lembrança. Amar alguém que já não existe
mais — ou que nunca existiu de fato. Fugir de nós mesmos e ainda assim carregar
nossa sombra por onde formos. Somos contraditórios por natureza: queremos
liberdade e rotina, segurança e aventura, solidão e companhia. Queremos ser
únicos e, ao mesmo tempo, aceitos por todos. E talvez seja aí que more a nossa
beleza: na tentativa sincera de dar conta de tudo isso com os parcos recursos
de um coração inquieto.
Nietzsche,
que não era exatamente otimista, já dizia que “o homem é uma corda estendida
entre o animal e o super-homem — uma corda sobre o abismo.” Vivemos nesse fio,
tentando não cair, tentando fazer sentido. E se tropeçamos, não é porque somos
fracos, mas porque estamos em movimento. Só quem está em movimento tropeça.
Então
talvez a complicação não seja uma falha, mas uma flor selvagem que brota da
nossa condição. Um emaranhado de raízes, paradoxos e vontades que nos torna...
humanos. E que sorte a nossa: poder chorar num filme bobo, sentir saudade de um
cheiro, mudar de ideia no meio de uma frase, amar errado e continuar tentando.
Isso é complicação. Mas é também — e profundamente — vida.
Porque,
no fim das contas, viver não é resolver. É aprender a dançar com o que não se
entende.
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