O real quando perde a vergonha de se misturar.
Quem
nunca pensou que segunda-feira tem cor? Ou que o nome de alguém "soa
verde"? Há quem jure sentir o gosto do número cinco, ou ouvir o cheiro da
chuva. Os neurologistas dão um nome bonito e técnico para isso: sinestesia.
Um curto-circuito sensorial, dizem. Uma ponte cruzada no cérebro.
Mas
talvez seja o contrário: não um defeito, mas uma relíquia. Um traço esquecido
de quando o real era um só, antes que o pensamento humano começasse a podar e
separar: visão aqui, som ali, cheiro acolá.
O
filósofo francês Maurice Merleau-Ponty alertava: o corpo não sente o
mundo em canais isolados. Ele vive uma presença global do real, uma "carne
do mundo" onde tato, visão e audição ainda são faces da mesma moeda. Na
criança pequena — e no artista — isso é evidente: tudo é tudo ao mesmo tempo.
Só mais tarde, com a domesticação do olhar, a separação artificial começa.
O
mundo dos sentidos embaralhados
O
poeta sente isso de modo natural. Arthur Rimbaud, na juventude ousada do
século XIX, escreveu o célebre soneto das "vogais coloridas": A é
preto, E é branco, I é vermelho, U é verde, O é azul. Os sentidos, livres de
função prática, se reencontram na festa do absurdo.
Mas
é possível que isso vá além da poesia. Para Gilles Deleuze, toda
experiência sensível carrega uma potência de conexão múltipla, rizomática, sem
hierarquia. O som pode ser luz. O cheiro pode ser volume. O gosto pode ser
tempo. O real é esse campo de intensidades que só o pensamento domesticado
transformou em departamentos estanques.
Sinestesia
cotidiana: a confusão que salva
Mesmo
quem não tem "sinestesia clínica" sente isso de vez em quando. Quem
nunca chamou uma voz de "aveludada"? Ou disse que um olhar
"pesa"? E quando dizemos que uma lembrança tem "cheiro de
infância"? Não são metáforas: são escorregamentos reais entre canais
sensoriais, lampejos de sinestesia existencial que resistem no cotidiano.
Vilém
Flusser, filósofo nascido em Praga e radicado no Brasil,
dizia que nossa técnica moderna ampliou a separação dos sentidos. A fotografia
só para o olho. O rádio só para o ouvido. O telefone, a tela, o texto — todos
nos treinaram para dividir a experiência. Mas a arte quer o oposto: reunião,
mistura, fusão. O cinema, a dança, a performance, o happening — tudo clama pela
volta da sinestesia originária. O humano não quer aparelhos separados. Quer um
mundo inteiro de novo.
E
se o real fosse sinestésico desde sempre?
Aqui
mora uma hipótese perigosa: e se o real nunca tivesse sido feito de sentidos
separados? E se nossa divisão entre som, luz, sabor, tato for só uma construção
útil, uma lente artificial?
O
filósofo inglês Alfred North Whitehead já sugeria isso em sua
"filosofia do processo": a realidade não é feita de
"coisas" sólidas, mas de experiências fluídas — eventos vibratórios
que podem ser percebidos de múltiplas maneiras ao mesmo tempo. A sinestesia não
seria então um defeito neurológico, mas uma fresta por onde escapa o real em
estado bruto.
Por
isso o artista sinestésico (ou o místico, ou o poeta) não vê "mais"
que os outros — vê o que todos veem antes da poda. Antes do corte. Antes do
"organograma dos sentidos" ser imposto.
Conclusão
aberta: para um mundo menos tímido
Talvez
seja isso o que nos falta: um mundo menos tímido, onde o som aceite ser cheiro,
a palavra aceite ter temperatura, a segunda-feira confesse sua cor.
Enquanto
isso não acontece, pequenas sinestesias resistem. Na poesia, na infância, no
sonho, na memória de um cheiro que ilumina uma paisagem perdida. Pequenos
vazamentos do real verdadeiro.
Ou,
como dizia Merleau-Ponty, "o mundo não é aquilo que eu penso, mas
aquilo que eu vivo". E viver talvez seja — sempre — misturar.
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