O Inédito Viável em Chamas
Feche
os olhos. Sinta o cheiro de tinta fresca na parede recém-pichada, ouça o som
rachado de uma guitarra feita em casa, sinta a vibração de vozes que não pedem
licença para existir. Contracultura é isso: uma recusa polida não serve; o que
vale é o “não” dito com o corpo inteiro. Não é moda alternativa, não é só o
figurino dos anos 60 ou 70 — é uma pulsação que surge sempre que alguém decide
que não vai seguir a coreografia ensaiada pelo mundo.
Quando
Theodore Roszak, em The Making of a Counter Culture, descreveu a
explosão juvenil que misturava rock psicodélico, filosofia oriental e protestos
contra a guerra, ele captou algo maior do que um momento histórico: captou o
impulso de reinventar a percepção. Michel Foucault, com seu faro para as
engrenagens invisíveis do poder, nos lembraria que esse gesto é sempre mais do
que estética — é contra-coreografia, uma tentativa de mudar o passo antes que a
música da ordem termine.
No
Brasil, contracultura é tropicalismo misturando guitarra elétrica e berimbau, é
o improviso que Hermano Vianna enxerga como traço identitário, é o
espaço produzido pela troca humana que Milton Santos descreveu como
antídoto contra a pasteurização do mundo. Renato Janine Ribeiro vai mais
longe: resistir culturalmente é ato político e poético ao mesmo tempo.
Hoje,
ela não mora só nos cartazes amassados de festivais independentes. Está nas
bandas que gravam no quarto e lançam no Bandcamp, recusando o crivo de
gravadoras; nos slams que ocupam praças e fazem do asfalto um palco; nos
coletivos de mídia como a Mídia Ninja que narram os fatos a partir de
uma lente própria. Está no agricultor que troca sementes crioulas para driblar
a lógica industrial e no programador que cria software livre para que o
conhecimento não tenha dono. Está na aldeia indígena que transmite, via
celular, um ritual ancestral — e transforma o 4G em ponte cultural.
A
contracultura digital é, talvez, sua encarnação mais intrigante: não foge da
tecnologia, mas a subverte. Hackers que defendem criptografia como direito,
artistas que usam inteligência artificial não para repetir estéticas
pré-fabricadas, mas para questionar o próprio papel da máquina na criação.
Ela
é líquida, difusa, atravessa o feed e o rio, o bit e o batuque. E, no entanto,
conserva sua essência: recusar o script e escrever a própria cena, improvisando
luz e cenário se for preciso. É, como dizia Paulo Freire, o “inédito
viável”: aquilo que ainda não existe, mas pode nascer se alguém ousar imaginar
— e tiver coragem de colocar as mãos, o corpo e o risco nesse nascimento.
No
fundo, contracultura não é apenas contra algo. É a favor de um mundo que ainda
não foi permitido, mas que insiste em aparecer pelas frestas. É um sopro de ar
fresco em corredores abafados. É um riso fora de hora na reunião séria. É a
flor que cresce na rachadura do concreto — e recusa ser arrancada.