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sábado, 16 de agosto de 2025

Contracultura

O Inédito Viável em Chamas

Feche os olhos. Sinta o cheiro de tinta fresca na parede recém-pichada, ouça o som rachado de uma guitarra feita em casa, sinta a vibração de vozes que não pedem licença para existir. Contracultura é isso: uma recusa polida não serve; o que vale é o “não” dito com o corpo inteiro. Não é moda alternativa, não é só o figurino dos anos 60 ou 70 — é uma pulsação que surge sempre que alguém decide que não vai seguir a coreografia ensaiada pelo mundo.

Quando Theodore Roszak, em The Making of a Counter Culture, descreveu a explosão juvenil que misturava rock psicodélico, filosofia oriental e protestos contra a guerra, ele captou algo maior do que um momento histórico: captou o impulso de reinventar a percepção. Michel Foucault, com seu faro para as engrenagens invisíveis do poder, nos lembraria que esse gesto é sempre mais do que estética — é contra-coreografia, uma tentativa de mudar o passo antes que a música da ordem termine.

No Brasil, contracultura é tropicalismo misturando guitarra elétrica e berimbau, é o improviso que Hermano Vianna enxerga como traço identitário, é o espaço produzido pela troca humana que Milton Santos descreveu como antídoto contra a pasteurização do mundo. Renato Janine Ribeiro vai mais longe: resistir culturalmente é ato político e poético ao mesmo tempo.

Hoje, ela não mora só nos cartazes amassados de festivais independentes. Está nas bandas que gravam no quarto e lançam no Bandcamp, recusando o crivo de gravadoras; nos slams que ocupam praças e fazem do asfalto um palco; nos coletivos de mídia como a Mídia Ninja que narram os fatos a partir de uma lente própria. Está no agricultor que troca sementes crioulas para driblar a lógica industrial e no programador que cria software livre para que o conhecimento não tenha dono. Está na aldeia indígena que transmite, via celular, um ritual ancestral — e transforma o 4G em ponte cultural.

A contracultura digital é, talvez, sua encarnação mais intrigante: não foge da tecnologia, mas a subverte. Hackers que defendem criptografia como direito, artistas que usam inteligência artificial não para repetir estéticas pré-fabricadas, mas para questionar o próprio papel da máquina na criação.

Ela é líquida, difusa, atravessa o feed e o rio, o bit e o batuque. E, no entanto, conserva sua essência: recusar o script e escrever a própria cena, improvisando luz e cenário se for preciso. É, como dizia Paulo Freire, o “inédito viável”: aquilo que ainda não existe, mas pode nascer se alguém ousar imaginar — e tiver coragem de colocar as mãos, o corpo e o risco nesse nascimento.

No fundo, contracultura não é apenas contra algo. É a favor de um mundo que ainda não foi permitido, mas que insiste em aparecer pelas frestas. É um sopro de ar fresco em corredores abafados. É um riso fora de hora na reunião séria. É a flor que cresce na rachadura do concreto — e recusa ser arrancada.


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