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domingo, 22 de junho de 2025

Sinestesia


O real quando perde a vergonha de se misturar.

Quem nunca pensou que segunda-feira tem cor? Ou que o nome de alguém "soa verde"? Há quem jure sentir o gosto do número cinco, ou ouvir o cheiro da chuva. Os neurologistas dão um nome bonito e técnico para isso: sinestesia. Um curto-circuito sensorial, dizem. Uma ponte cruzada no cérebro.

Mas talvez seja o contrário: não um defeito, mas uma relíquia. Um traço esquecido de quando o real era um só, antes que o pensamento humano começasse a podar e separar: visão aqui, som ali, cheiro acolá.

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty alertava: o corpo não sente o mundo em canais isolados. Ele vive uma presença global do real, uma "carne do mundo" onde tato, visão e audição ainda são faces da mesma moeda. Na criança pequena — e no artista — isso é evidente: tudo é tudo ao mesmo tempo. Só mais tarde, com a domesticação do olhar, a separação artificial começa.

O mundo dos sentidos embaralhados

O poeta sente isso de modo natural. Arthur Rimbaud, na juventude ousada do século XIX, escreveu o célebre soneto das "vogais coloridas": A é preto, E é branco, I é vermelho, U é verde, O é azul. Os sentidos, livres de função prática, se reencontram na festa do absurdo.

Mas é possível que isso vá além da poesia. Para Gilles Deleuze, toda experiência sensível carrega uma potência de conexão múltipla, rizomática, sem hierarquia. O som pode ser luz. O cheiro pode ser volume. O gosto pode ser tempo. O real é esse campo de intensidades que só o pensamento domesticado transformou em departamentos estanques.

Sinestesia cotidiana: a confusão que salva

Mesmo quem não tem "sinestesia clínica" sente isso de vez em quando. Quem nunca chamou uma voz de "aveludada"? Ou disse que um olhar "pesa"? E quando dizemos que uma lembrança tem "cheiro de infância"? Não são metáforas: são escorregamentos reais entre canais sensoriais, lampejos de sinestesia existencial que resistem no cotidiano.

Vilém Flusser, filósofo nascido em Praga e radicado no Brasil, dizia que nossa técnica moderna ampliou a separação dos sentidos. A fotografia só para o olho. O rádio só para o ouvido. O telefone, a tela, o texto — todos nos treinaram para dividir a experiência. Mas a arte quer o oposto: reunião, mistura, fusão. O cinema, a dança, a performance, o happening — tudo clama pela volta da sinestesia originária. O humano não quer aparelhos separados. Quer um mundo inteiro de novo.

E se o real fosse sinestésico desde sempre?

Aqui mora uma hipótese perigosa: e se o real nunca tivesse sido feito de sentidos separados? E se nossa divisão entre som, luz, sabor, tato for só uma construção útil, uma lente artificial?

O filósofo inglês Alfred North Whitehead já sugeria isso em sua "filosofia do processo": a realidade não é feita de "coisas" sólidas, mas de experiências fluídas — eventos vibratórios que podem ser percebidos de múltiplas maneiras ao mesmo tempo. A sinestesia não seria então um defeito neurológico, mas uma fresta por onde escapa o real em estado bruto.

Por isso o artista sinestésico (ou o místico, ou o poeta) não vê "mais" que os outros — vê o que todos veem antes da poda. Antes do corte. Antes do "organograma dos sentidos" ser imposto.

Conclusão aberta: para um mundo menos tímido

Talvez seja isso o que nos falta: um mundo menos tímido, onde o som aceite ser cheiro, a palavra aceite ter temperatura, a segunda-feira confesse sua cor.

Enquanto isso não acontece, pequenas sinestesias resistem. Na poesia, na infância, no sonho, na memória de um cheiro que ilumina uma paisagem perdida. Pequenos vazamentos do real verdadeiro.

Ou, como dizia Merleau-Ponty, "o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo". E viver talvez seja — sempre — misturar.

Filosofia do Processo

Whitehead e o mundo em movimento!

Há uma ilusão muito comum no modo como lidamos com o mundo: acreditamos que as coisas são. A cadeira é cadeira, o rio é rio, eu sou eu. Essa ideia parece tão sólida quanto o concreto de uma calçada. Mas para Alfred North Whitehead, filósofo britânico, um dos filósofos mais originais do século XX, essa visão do mundo está enganada desde o início. O mundo não é feito de “coisas” — é feito de processos.

Whitehead não era só filósofo; antes disso, foi matemático e trabalhou com Bertrand Russell na famosa obra Principia Mathematica. Mas foi na maturidade que ele deu um salto surpreendente para a metafísica, fundando o que hoje chamamos de Filosofia do Processo. Uma filosofia que não vê o mundo como um estoque de substâncias estáticas, mas como um fluxo incessante de eventos, relações e transformações.

Tudo o que existe... acontece

Na visão de Whitehead, até mesmo uma pedra não é algo fixo. Ela é uma sequência de processos energéticos, uma pequena narrativa cósmica que, lenta como as eras geológicas, ainda assim é mudança. O mesmo vale para você, para mim, para o som de um violão no fim da tarde ou o cheiro de pão saindo do forno.

Aliás, basta pensar no café da manhã. Parece um momento simples, mas não é. A mesa posta não existe como um “bloco”; ela é o resultado de mil ações: a plantação do café em algum país distante, o transporte até o supermercado, o seu gesto de acender a chaleira, a memória do sabor que você gosta, a escolha da xícara preferida. O café da manhã é um acontecimento — uma rede viva de eventos que vieram de longe no espaço e no tempo.

Outro exemplo: uma conversa no trabalho. Você chega tenso de casa, alguém sorri de leve, você relaxa, diz uma piada, o outro responde, vocês se entendem melhor. Não existe “você fixo” e “colega fixo”. Existe uma dança de emoções, intenções, palavras. Mesmo os silêncios têm efeito. O instante de agora já carrega ecos do que aconteceu antes — a discussão de ontem, a gentileza da semana passada — e prepara o campo para o que virá. É puro processo.

Ou então um passeio pela rua. As lojas mudaram a vitrine, a padaria da esquina fechou, um prédio novo surgiu onde havia uma casa antiga. Você mesmo mudou — anda mais devagar, olha para o céu, pensa em outras coisas. Até o caminho para casa não é o mesmo de ontem, porque você não é mais o mesmo de ontem. O que existe é esse fluxo onde cidade, corpo e memória se misturam.

O Deus de Whitehead

Outro ponto notável é a visão de Deus nessa filosofia. Para Whitehead, Deus não é o criador de um mundo pronto e acabado, mas parte do processo cósmico. Deus mantém possibilidades abertas, uma espécie de “lure” — uma sedução para que o mundo tenda à beleza, à harmonia, à intensidade. Mas o desfecho de cada momento é decidido no processo, e não decretado de cima. Isso abre espaço para o acaso, para o risco, para a criatividade genuína do universo.

Na prática? Quando alguém resolve largar um emprego seguro para abrir uma pequena livraria de bairro, ou quando um vizinho planta flores num canteiro abandonado, algo do possível se torna real — e o universo inteiro muda um pouco. Para Whitehead, Deus sussurra essas possibilidades de harmonia, mas a escolha final está no fluxo das decisões humanas e cósmicas.

O real é relação

Essa filosofia desmonta a ideia de que as coisas existem isoladamente. Nada é em si; tudo é em relação. Até o celular na sua mão agora é o resultado de processos — de tecnologia, de desejo de comunicação, de história econômica, de consumo. A própria bateria carrega energia que veio de usinas distantes. Até o descanso noturno é um processo: corpo, respiração, sonho, esquecimento.

Quando você encontra um velho amigo na rua, esse encontro não é a soma de duas “coisas”. É um evento novo, cheio de memórias de infância, de mudanças de vida, de expectativas futuras. Cada olhar troca experiências, cada frase é carregada de tudo o que vocês já viveram. O real é sempre relação.

O mundo como obra inacabada

Em Whitehead, o universo não é uma máquina que funciona; é uma obra de arte inacabada. Algo que se faz, se desfaz e se refaz o tempo todo. E nós, humanos, somos parte desse processo criativo — não como espectadores, mas como co-autores. Por isso, cada escolha nossa acrescenta um fio à trama do real.

Henrique de Lima Vaz dizia que a existência é uma tarefa: ela nunca está dada, sempre está por fazer. Essa é uma intuição bem próxima do pensamento processual de Whitehead. O mundo não é pronto: ele espera, a cada instante, ser tecido de novo.

Na vida cotidiana isso significa que nenhuma situação é um beco sem saída absoluto. Aquele relacionamento que parece ter esgotado o sentido, aquele trabalho que já não motiva, podem — com imaginação, risco e coragem — ser recriados, refeitos, transfigurados. O processo não se fecha.

O que aprendemos com Whitehead?

Que viver é participar de um fluxo. Que nada é fixo — nem o mundo, nem você. Que o real se faz de encontros e relações, não de substâncias isoladas. Que até o almoço simples de terça-feira carrega a história do universo. E que o futuro não está escrito: ele é possibilidade aberta, sempre à espera de um novo gesto criativo.

Talvez por isso viver seja tão inquietante e tão belo: porque tudo pode ser, tudo ainda está sendo.