Sentado num banco de praça ou vendo o tempo passar da janela de um ônibus, às vezes a gente se pega pensando: como é que a humanidade chegou até aqui? De deuses com raios nas mãos a foguetes em Marte, tem um salto curioso. Essa inquietação foi também a de Auguste Comte, no século XIX. Ele não estava na praça nem no ônibus, mas olhava o mundo com olhos de quem queria encontrar uma lógica no caos da história do pensamento humano.
Comte
propôs uma ideia ousada: a mente humana evolui em três grandes estágios. Quase
como se a cabeça da humanidade fosse uma criança, depois adolescente, e então
adulta. Mas será mesmo que crescemos tanto assim?
A
teoria: os três degraus da escada comtiana
Para
Comte, a humanidade atravessa três fases, tanto no plano coletivo quanto
individual:
- Estágio Teológico
– Aqui, o mundo é explicado por vontades sobrenaturais. Um raio cai? Foi
Zeus. A chuva demora? É porque os deuses estão zangados. É o tempo da fé e
da personalização da natureza.
- Estágio Metafísico
– Agora os deuses saem de cena, mas não completamente. Eles são
substituídos por forças abstratas, como “natureza”, “vontade universal” ou
“essência”. Já é um pensamento mais racional, mas ainda não científico.
- Estágio Positivo
– O auge, segundo Comte. A mente humana finalmente para de buscar causas
ocultas e passa a estudar as leis dos fenômenos com base em observação,
experimentação e método científico. Nada de “por que”, agora só se
pergunta “como funciona?”.
Comte
acreditava que só no estágio positivo poderíamos construir uma sociedade
verdadeiramente racional, guiada pela ciência e pela ordem. Uma espécie de
tecnocracia iluminada, com cientistas e engenheiros como novos sacerdotes do
saber.
As
rachaduras da escada: críticas à teoria
Mas
nem todo mundo subiu essa escada com gosto. Muitos pensadores apontaram que,
apesar de elegante, a teoria de Comte tem furos na parede da realidade.
1. A ilusão do progresso linear
Crítico: Michel
Foucault
A
ideia de que todos os povos caminham exatamente pelos mesmos degraus ignora a pluralidade
das culturas e histórias. Foucault mostrou que o saber não evolui de forma
linear, mas se reorganiza por rupturas, descontinuidades e relações de poder. A
noção de “progresso inevitável” é uma construção do Ocidente moderno, que impõe
sua visão como universal.
2. O cientificismo como nova religião
Crítico: Friedrich
Nietzsche
Comte
acreditava tanto na ciência que propôs uma espécie de “Religião da Humanidade”.
Nietzsche viu nisso uma substituição de deuses por ídolos modernos: a
ciência vira fé, e o “homem racional” vira sacerdote. Para ele, esse tipo de
racionalismo é uma forma disfarçada de niilismo — uma tentativa desesperada de
dar sentido à existência sem encarar seu vazio trágico.
3. A ciência não é neutra nem perfeita
Crítico: Thomas
Kuhn
Em
seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, Kuhn mostrou que a
ciência não avança de forma contínua e neutra, mas por meio de rupturas
paradigmáticas, disputas internas e influências sociais. A crença comtiana na
objetividade pura da ciência foi duramente abalada. A ciência também erra, é
política e está sujeita a modas intelectuais.
4. As três fases não se excluem
Crítico: Clifford
Geertz
Geertz,
antropólogo interpretativo, mostrou que o pensamento simbólico, religioso e
metafísico continua presente mesmo em sociedades tecnologicamente avançadas.
Culturas não substituem uma lógica por outra: elas combinam e reinterpretam
ideias diversas. Isso derruba a ideia de uma evolução em linha reta. Na vida
real, carregamos todos os estágios ao mesmo tempo.
A
força e o perigo das classificações
No
fundo, a teoria de Comte é uma tentativa de organizar a história da mente
humana em uma linha reta, clara, sem desvios. Isso ajuda a pensar, mas pode
enganar. A realidade é mais feita de círculos, espirais, voltas e retornos do
que de linhas retas.
As
ideias de Comte ajudaram a consolidar a sociologia como campo científico — e
isso é um mérito imenso. Mas sua teoria, quando tomada como verdade absoluta,
escorrega no autoritarismo da razão. Como se quem ainda pensa com os pés
no mito ou no mistério fosse um ser inferior, um atraso.
Epílogo:
talvez estejamos nos três estágios ao mesmo tempo
Hoje,
podemos usar um aplicativo com inteligência artificial e depois fazer uma
oração antes de dormir. Estudar física quântica e ainda assim buscar um sentido
espiritual para a vida. Talvez o ser humano não “evolua” de forma limpa, mas misture
tudo, como quem carrega nas costas a infância, a adolescência e a
maturidade — todas juntas, no mesmo corpo, no mesmo tempo.
E
quem sabe seja justamente essa contradição que nos torna... humanos.
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