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terça-feira, 15 de abril de 2025

Filosofia da Gamificação

Outro dia, percebi que estava ganhando pontos por escovar os dentes. Sim, pontos. O aplicativo me dizia que eu tinha conquistado um “troféu” por manter uma rotina de higiene bucal durante sete dias seguidos. Fiquei meio envergonhado por me sentir orgulhoso disso. Mas ali estava eu, com um sorriso infantil, feliz por um troféu virtual que ninguém mais veria.

Comecei a observar o quanto minha vida estava se parecendo com um jogo. O relógio me diz quando descansar. O celular vibra para que eu me levante. O app de caminhada me dá estrelas. O site de estudos me dá selos. Trabalho com metas, ganho bônus. E o Instagram? Um grande tabuleiro de reconhecimento instantâneo.

A vida virou um game?

A ilusão do controle lúdico

A gamificação vende a ideia de que podemos transformar qualquer tarefa em algo divertido, envolvente, até heroico. É como se a vida real fosse chata demais — e só um verniz de jogo pudesse nos dar sentido. Mas o que isso revela é uma verdade incômoda: estamos cada vez mais precisando de estruturas externas para nos sentirmos motivados.

Nietzsche, que desconfiava de qualquer moral de rebanho, provavelmente sorriria com ironia diante disso. Para ele, o homem deveria ser o criador de seus próprios valores, o “espírito livre”. Mas em vez disso, estamos terceirizando até nosso impulso vital. Não fazemos mais algo porque queremos — fazemos porque ganharemos uma medalhinha.

A pergunta que Nietzsche nos jogaria como uma granada:

Você vive por convicção ou por recompensa?

O jogo como simulacro

Jean Baudrillard também daria sua cartada filosófica aqui. Para ele, vivemos na era dos simulacros — representações que substituem a realidade a ponto de a realidade se tornar irreconhecível. Na gamificação, isso é evidente: você não planta uma horta porque gosta de ver algo crescer, mas porque o app de jardinagem te deu 300 moedas douradas.

A consequência disso? A realidade fica secundária. Os afetos se deslocam. A experiência concreta da vida se esvazia, substituída por efeitos sonoros e recompensas digitais. Como se o que importa fosse o “nível 10 da vida saudável” e não o fato de você ter caminhado num parque e sentido o cheiro da grama molhada.

Lembram quando falamos sobre “simulacro” em vários artigos anteriores? A repetição nos faz reforçar nossos cuidados com o que acontece em nosso entorno, pois queremos viver momento a momento conscientemente.

A estética do progresso

Mas há também algo de belo nisso tudo — e perigoso. A gamificação resgata a estética do progresso. Cada barra que sobe, cada conquista desbloqueada, cada troféu reluzente, tudo isso dá à existência um ritmo quase épico. Mesmo que seja um épico de lavar a louça.

O problema é quando confundimos esse progresso estético com crescimento real. Um nível a mais não significa maturidade emocional. Um selo de “leitor voraz” não garante reflexão profunda. A vida pode estar cheia de conquistas simbólicas e, ainda assim, ser vazia de significado.

Jogar ou ser jogado?

A gamificação, então, nos coloca num dilema existencial curioso: jogar o jogo ou ser jogado por ele? Se somos conscientes do processo, podemos usar os elementos lúdicos a nosso favor. Transformar o cotidiano em algo mais leve, mais criativo. Mas se deixamos que a lógica do jogo invada todos os espaços, perdemos o pulso da vida espontânea — aquela que não precisa de pontos para valer a pena.

É como disse o pensador brasileiro N. Sri Ram, em O Caminho do Discípulo:

Que a vida verdadeira é aquela que flui de dentro, e não aquela que é moldada apenas por estímulos exteriores.

A alma não joga por troféus

Na visão espiritual — não religiosa, mas interior — a vida é compreendida como um processo de desenvolvimento do ser, e não apenas de metas externas. O jogo, nesse sentido, só faz sentido quando nos aproxima da escuta interior. Se nos afastamos de nós mesmos, buscando gratificações instantâneas como se fossem alimento para a alma, corremos o risco de perder o fio sutil que conecta o cotidiano ao sagrado. A espiritualidade lembra que o gesto simples pode ser um rito, a rotina pode ser meditação, e o progresso não se mede em pontos, mas em presença. Talvez a pergunta verdadeira não seja “quantos níveis subi hoje?”, mas sim: “em que medida fui inteiro no que fiz?”

Em busca de sentido além do tabuleiro

Talvez o desafio não seja abandonar a gamificação, mas transcendê-la. Fazer de cada ato um jogo sim, mas um jogo com regras próprias. Não porque um aplicativo mandou, mas porque há algo em nós que desperta com isso: o prazer de agir, o gosto pelo gesto, a beleza do processo em si.

No fim das contas, o jogo da vida não tem placar visível. Os melhores momentos não rendem medalhas. E as missões mais profundas são aquelas que só nós mesmos podemos reconhecer que cumprimos.


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