Outro dia, percebi que estava ganhando pontos por escovar os dentes. Sim, pontos. O aplicativo me dizia que eu tinha conquistado um “troféu” por manter uma rotina de higiene bucal durante sete dias seguidos. Fiquei meio envergonhado por me sentir orgulhoso disso. Mas ali estava eu, com um sorriso infantil, feliz por um troféu virtual que ninguém mais veria.
Comecei
a observar o quanto minha vida estava se parecendo com um jogo. O relógio me
diz quando descansar. O celular vibra para que eu me levante. O app de
caminhada me dá estrelas. O site de estudos me dá selos. Trabalho com metas,
ganho bônus. E o Instagram? Um grande tabuleiro de reconhecimento instantâneo.
A
vida virou um game?
A
ilusão do controle lúdico
A
gamificação vende a ideia de que podemos transformar qualquer tarefa em algo
divertido, envolvente, até heroico. É como se a vida real fosse chata demais —
e só um verniz de jogo pudesse nos dar sentido. Mas o que isso revela é uma
verdade incômoda: estamos cada vez mais precisando de estruturas externas para
nos sentirmos motivados.
Nietzsche,
que desconfiava de qualquer moral de rebanho, provavelmente sorriria com ironia
diante disso. Para ele, o homem deveria ser o criador de seus próprios valores,
o “espírito livre”. Mas em vez disso, estamos terceirizando até nosso impulso
vital. Não fazemos mais algo porque queremos — fazemos porque ganharemos uma
medalhinha.
A
pergunta que Nietzsche nos jogaria como uma granada:
Você
vive por convicção ou por recompensa?
O
jogo como simulacro
Jean
Baudrillard também daria sua cartada filosófica aqui. Para ele, vivemos na era
dos simulacros — representações que substituem a realidade a ponto de a
realidade se tornar irreconhecível. Na gamificação, isso é evidente: você não
planta uma horta porque gosta de ver algo crescer, mas porque o app de
jardinagem te deu 300 moedas douradas.
A
consequência disso? A realidade fica secundária. Os afetos se deslocam. A
experiência concreta da vida se esvazia, substituída por efeitos sonoros e
recompensas digitais. Como se o que importa fosse o “nível 10 da vida saudável”
e não o fato de você ter caminhado num parque e sentido o cheiro da grama
molhada.
Lembram
quando falamos sobre “simulacro” em vários artigos anteriores? A
repetição nos faz reforçar nossos cuidados com o que acontece em nosso entorno,
pois queremos viver momento a momento conscientemente.
A
estética do progresso
Mas
há também algo de belo nisso tudo — e perigoso. A gamificação resgata a
estética do progresso. Cada barra que sobe, cada conquista desbloqueada, cada
troféu reluzente, tudo isso dá à existência um ritmo quase épico. Mesmo que
seja um épico de lavar a louça.
O
problema é quando confundimos esse progresso estético com crescimento real. Um
nível a mais não significa maturidade emocional. Um selo de “leitor voraz” não
garante reflexão profunda. A vida pode estar cheia de conquistas simbólicas e,
ainda assim, ser vazia de significado.
Jogar
ou ser jogado?
A
gamificação, então, nos coloca num dilema existencial curioso: jogar o jogo ou
ser jogado por ele? Se somos conscientes do processo, podemos usar os elementos
lúdicos a nosso favor. Transformar o cotidiano em algo mais leve, mais
criativo. Mas se deixamos que a lógica do jogo invada todos os espaços,
perdemos o pulso da vida espontânea — aquela que não precisa de pontos para
valer a pena.
É
como disse o pensador brasileiro N. Sri Ram, em O Caminho do Discípulo:
Que
a vida verdadeira é aquela que flui de dentro, e não aquela que é moldada
apenas por estímulos exteriores.
A
alma não joga por troféus
Na
visão espiritual — não religiosa, mas interior — a vida é compreendida como um
processo de desenvolvimento do ser, e não apenas de metas externas. O jogo,
nesse sentido, só faz sentido quando nos aproxima da escuta interior. Se nos
afastamos de nós mesmos, buscando gratificações instantâneas como se fossem
alimento para a alma, corremos o risco de perder o fio sutil que conecta o
cotidiano ao sagrado. A espiritualidade lembra que o gesto simples pode ser um
rito, a rotina pode ser meditação, e o progresso não se mede em pontos, mas em
presença. Talvez a pergunta verdadeira não seja “quantos níveis subi hoje?”,
mas sim: “em que medida fui inteiro no que fiz?”
Em
busca de sentido além do tabuleiro
Talvez
o desafio não seja abandonar a gamificação, mas transcendê-la. Fazer de cada
ato um jogo sim, mas um jogo com regras próprias. Não porque um aplicativo
mandou, mas porque há algo em nós que desperta com isso: o prazer de agir, o
gosto pelo gesto, a beleza do processo em si.
No
fim das contas, o jogo da vida não tem placar visível. Os melhores momentos não
rendem medalhas. E as missões mais profundas são aquelas que só nós mesmos
podemos reconhecer que cumprimos.
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