Outro dia, entrei num aplicativo de delivery só pra ver o cardápio — sem fome, sem intenção de pedir nada. Minutos depois, percebi que já estava há meia hora ali, entre imagens de hambúrgueres e promoções de sushi. Quando fechei o celular, senti uma estranha paz. Como se eu tivesse conseguido fugir de alguma coisa. Mas fugir de quê, exatamente? Do tédio? De um incômodo que eu não queria nomear? Ou de algum conflito interno que me esperava na curva do pensamento? Foi aí que comecei a pensar sobre o papel do escapismo na nossa vida — e como ele se mistura, se confunde e às vezes até alimenta os nossos próprios conflitos.
A
natureza do escapismo
Escapar
não é necessariamente um erro. É humano. Desde as cavernas, inventamos maneiras
de esquecer a dor. Primeiro com histórias ao redor do fogo, depois com deuses,
depois com novelas e redes sociais. Hoje, cada notificação é uma brecha para
fora de nós mesmos. Escapar é criar atalhos mentais, anestesias rápidas para os
choques da realidade.
Mas
o que está por trás desse impulso? O filósofo francês Blaise Pascal dizia que
“toda a infelicidade do homem se deve a uma única coisa: não saber ficar quieto
num quarto.” Ele não estava falando de paz, mas de enfrentamento. Ficar
sozinho, em silêncio, é quase como entrar em campo contra um adversário
invisível — você mesmo.
O
conflito como revelador
Todo
escapismo nasce de um conflito, mas raramente o resolve. Às vezes, ele o
posterga, às vezes o alimenta. A série que maratonamos para esquecer o vazio da
segunda-feira talvez só o aprofunde. O vinho do sábado à noite, tomado para
afastar a angústia da solidão, pode se transformar em um ritual que a eterniza.
E é assim que o escape vira prisão.
No
fundo, o conflito tem uma função reveladora. Ele nos mostra o que não queremos
ver. Ele aponta rachaduras. Conflitos internos são como alarmes: barulhentos,
incômodos, mas essenciais. É neles que moram as perguntas mais difíceis — e por
isso mesmo mais importantes.
A
ilusão do alívio
N.
Sri Ram, pensador da tradição teosófica, dizia que "a mente está sempre em
movimento, e esse movimento é, em grande parte, uma fuga da percepção
verdadeira do que somos." Segundo ele, enquanto não cessarmos esse
movimento de fuga, não encontraremos clareza. Isso significa que enquanto
estivermos nos distraindo, estaremos nos afastando de uma percepção mais lúcida
da vida — mesmo quando acreditamos estar “cuidando da saúde mental”.
O
escapismo é, nesse sentido, uma ilusão de alívio. Ele parece proteger, mas nos
fragiliza. Ele parece nos dar liberdade, mas nos aprisiona em ciclos de
repetição. Quanto mais fugimos, mais nos perdemos.
O
que fazer com isso?
Escapar
é inevitável. Mas talvez o segredo esteja em saber de onde se escapa, para onde
se escapa — e por quê. Às vezes, precisamos de uma pausa, sim. Um filme, uma
viagem, um livro. Mas a pergunta fica: esse refúgio está me preparando para
voltar mais inteiro? Ou está me afastando ainda mais do que preciso encarar?
O
verdadeiro caminho talvez não seja nem fuga nem conflito direto, mas um
meio-termo atento: perceber quando estamos escapando, e o que exatamente
estamos evitando. Porque às vezes, no meio de uma fuga, podemos acabar
tropeçando na verdade. E isso, sim, pode ser o começo de uma reconciliação
interna.
No
fim das contas, não se trata de eliminar o escapismo, mas de compreendê-lo como
sintoma. E talvez, quem sabe, começar a escutar os conflitos com menos medo.
Porque eles, mais do que obstáculos, são portas — incômodas, mas honestas —
para aquilo que ainda não entendemos sobre nós mesmos.
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