...na Visão Budista: um Ensaio Filosófico com Pé no Chão
Outro
dia, esperando minha vez na fila do banco, observei um senhor discutindo com o
caixa sobre centavos que "sumiram" da conta. A irritação dele era
tamanha que parecia brigar com a própria existência. E ali, parado, me ocorreu:
será que a gente não briga mais com as ilusões do que com os fatos? Será que a
maioria das nossas preocupações não são como sombras que tomamos por objetos?
Nesse instante, lembrei do que o budismo chama de maya: o falso mundo.
O
teatro da ilusão
No
budismo, a ideia de falso mundo é tão central quanto o sofrimento. Maya não é
apenas ilusão no sentido de algo mágico ou miragem. É a própria estrutura de
como percebemos o mundo. Vemos solidez onde há fluxo. Vemos identidade onde há
mutação. Vemos posse onde há impermanência.
Essa
ilusão não é um defeito da realidade, mas um véu na mente. A gente constrói
castelos com tijolos feitos de desejo, aversão e ignorância — os três venenos.
Por isso o mundo que construímos com esses materiais acaba nos engolindo. O
sofrimento é consequência direta de acreditar que o mundo falso é o mundo real.
A
rua, o celular e a insatisfação constante
Você
já notou como ficamos incomodados quando o Wi-Fi cai? Ou quando o Uber demora?
Ou quando o feed do Instagram "não tem nada de novo"? Esse incômodo
revela o quanto estamos colados em representações que tomamos por realidade.
São camadas de maya: aplicativos que prometem conexão, mas nos afastam do
instante. Notícias que informam, mas também inflamam. Perfis que mostram vidas
que talvez nem existam fora do enquadramento da câmera.
O
falso mundo não é apenas o que está fora. Ele é o dentro também — esse monte de
pensamento automático, comparação inútil e memória distorcida que carregamos
como verdades absolutas.
O
copo que não segura água
A
filosofia budista vai direto ao ponto: tudo é impermanente. Tudo que nasce,
morre. Tudo que é composto, se desfaz. Ao perceber isso, a ideia de um mundo
sólido, estável, previsível, começa a ruir. E isso pode ser libertador.
Imagine
alguém tentando encher um copo com fundo furado. É isso que fazemos quando
queremos extrair estabilidade de algo que, por natureza, muda. Relações,
status, objetos, até mesmo o corpo. O sofrimento aparece não porque essas
coisas mudam, mas porque a gente espera que não mudem.
E
se o mundo falso fosse só um convite?
Mas
aqui vem o pulo do gato: o budismo não propõe negação da vida, nem fuga para um
mosteiro (a não ser que você queira). A visão budista do falso mundo é mais
como um convite para ver além. Não se trata de rejeitar tudo, mas de perceber:
"ah, isso é só forma, isso é só sensação, isso é só pensamento".
Quando
você vê o falso mundo como falso, ele não te prende mais. Ele continua
existindo — o trânsito, o chefe difícil, a conta de luz — mas agora você não é
arrastado com tanta força. Você atua no mundo, mas não se confunde com ele.
Um
comentário do mestre N. Sri Ram
O
pensador indiano N. Sri Ram, presidente da Sociedade Teosófica no século XX,
comentou em seu livro "O Verdadeiro e o Falso" que "a libertação
não é fugir do mundo, mas ver claramente através dele". Ele não falava de
rejeitar a experiência, mas de atravessá-la com sabedoria, com um olhar que
distingue essência de aparência.
Sri
Ram insistia que a verdade não é uma coisa que se adiciona à vida, mas algo que
se revela quando removemos os filtros da ilusão. Para ele, a clareza da mente é
mais importante que qualquer teoria. E é justamente essa clareza que nos
permite viver no mundo sem sermos dele.
Não
acordar, mas despertar
Então,
talvez a gente não precise acordar de um sonho, mas despertar dentro dele.
Reconhecer que o mundo em que vivemos é moldado por interpretações, por
projeções, e que há uma liberdade sutil escondida entre uma notificação de
celular e outra.
Da
próxima vez que você se irritar na fila do banco ou se sentir derrotado por um
comentário online, lembre: talvez não seja o mundo te atacando, mas o falso
mundo tentando te convencer de que ele é o único. Respire fundo. Observe. E
talvez, por um instante, você veja a fresta da realidade por onde entra o sol.
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