Outro
dia, me peguei observando o reflexo da rua numa poça
d’água. Tinha sol, mas também ventava frio. As pessoas passavam apressadas, e
eu, meio à toa, pensei: será que o que vejo é mesmo o que está lá fora? Ou é só
um reflexo — não só na água, mas na mente? E aí me veio à cabeça um nome que
quase ninguém cita numa conversa de bar: Empédocles.
A
percepção como mistura dos elementos
Empédocles,
o filósofo pré-socrático de Agrigento, talvez não ganhe o mesmo destaque que
Sócrates ou Platão, mas ele teve uma sacada genial: tudo que existe é feito de
quatro raízes — terra, água, ar e fogo — misturadas pelo Amor e separadas pelo
Ódio. Agora, se ele pensava assim sobre o mundo físico, por que não pensar a
percepção humana também como uma mistura dessas raízes?
Não
percebemos com "os olhos" apenas, mas com a composição inteira do
nosso ser. Empédocles dizia que "o semelhante conhece o
semelhante", ou seja, só percebemos aquilo que já existe em nós. A
terra em mim reconhece a terra do mundo. A água em mim se emociona com o rio. O
fogo em mim vibra com a paixão. O ar em mim sonha com as nuvens.
Perceber
é participar
Para
Empédocles, não existe uma separação entre sujeito e objeto como a filosofia
moderna adora discutir. Não somos uma câmera registrando o mundo. Somos parte
do mundo. Ver, sentir, cheirar, ouvir — tudo isso é um encontro entre o que há
dentro e fora de nós. Quando eu sinto o calor do sol na pele, não é só o sol me
tocando — é também meu fogo interno reconhecendo um parente distante.
E
é aqui que a coisa fica bonita: se percepção é mistura, então ela é fluida,
mutável, dançante. Ninguém vê o mesmo pôr do sol duas vezes, nem mesmo a mesma
pessoa. O que sentimos do mundo depende do que está mais forte em nós naquele
momento — se é a água, talvez estejamos mais sensíveis. Se é a terra, mais
contidos. Se o ar predomina, queremos voar. Se o fogo domina, queimamos por
dentro e tudo ao redor parece mais intenso.
A
ilusão da objetividade
A
modernidade construiu a ideia de uma percepção objetiva, como se pudéssemos
desligar nossa alma e virar instrumentos neutros. Mas Empédocles desmontaria
isso com facilidade. Para ele, não existe olhar sem mistura. Até o ódio altera
a percepção — ele separa os elementos, cria rupturas, endurece o que poderia
fluir.
Um
exemplo cotidiano? Quando estamos apaixonados (movidos pelo Amor, segundo
Empédocles), o mundo parece mais bonito, as cores mais vivas, até o cheiro do
asfalto molhado parece poesia. Mas quando estamos tomados pelo Ódio (ou pelo
medo, ou ressentimento), tudo escurece, tudo encolhe.
Ver
é ser
A
grande sacada de Empédocles talvez seja esta: perceber não é apenas captar, mas
também compor. Somos compositores da realidade a cada olhar. A percepção é o
lugar onde o mundo e a alma se abraçam — ou se evitam.
Na
próxima vez que olhar para uma poça d’água, pense: não é só a rua que está ali
refletida. É também você. E sua terra, sua água, seu fogo e seu ar — dançando
conforme a música dos elementos que você carrega.
Empédocles
talvez não tenha tido Instagram, mas entendia uma coisa que a gente esquece:
ver o mundo é sempre ver a si mesmo também.
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