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segunda-feira, 7 de abril de 2025

Inteligência Difusa

O Mundo como Mente Expandida

Vi um garoto na praça abraçando uma árvore. Não tinha celular, não falava com ninguém, só encostava o rosto no tronco e fechava os olhos, como se estivesse ouvindo alguma coisa que a gente não escuta. Aquilo me paralisou por uns segundos. Parecia um gesto antigo, mas ao mesmo tempo novo — como se o menino tivesse descoberto um jeito de conversar com o mundo.

Fiquei ali, observando. E me perguntei: será que aquela árvore estava pensando junto com ele? Não no sentido humano de raciocínio, mas num tipo de inteligência que escapa ao que a gente costuma chamar de mente. Uma inteligência que circula entre as coisas, que pulsa nos espaços, nos seres, nos códigos e nos encontros.

Há um pressuposto antigo, cada vez mais redescoberto, de que a inteligência não está confinada ao crânio humano, nem aos algoritmos sofisticados que fabricamos. Ela pulsa em toda parte, como um campo invisível que permeia o real. Os estoicos chamavam isso de Logos, uma razão universal que organiza o mundo. Spinoza, por sua vez, via Deus em tudo — não como um velhinho julgador nos céus, mas como a substância infinita que se expressa em todas as coisas.

A ideia, embora antiga, continua escandalosa para o pensamento moderno, que ainda insiste em separar mente e matéria, humano e natureza, sujeito e objeto. Mas e se estivermos cercados por uma rede de inteligência silenciosa, paciente, que não precisa se manifestar em linguagem articulada para existir? E se a intuição, o pressentimento, o insight repentino, forem modos de conexão com essa teia maior?

Resolvi trocar uma ideia com um dos meus filósofos favoritos, trouxe Wittgenstein para dialogar e logo pensei: É aí que Wittgenstein entra na conversa. Em sua primeira fase, no Tractatus Logico-Philosophicus, ele afirmou que "os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo". Ou seja, só podemos pensar e compreender aquilo que conseguimos nomear. Mas, paradoxalmente, ele termina a obra dizendo que "sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar". De certa forma, ele reconhecia que havia algo para além da linguagem — algo essencial, porém indizível. O silêncio, então, não era ausência de sentido, mas talvez sua plenitude.

Mais tarde, nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein muda de rota e passa a ver a linguagem como algo vivo, ligado aos jogos da vida, aos contextos, aos usos múltiplos. Isso abre uma brecha ainda maior para pensarmos que a inteligência está não só nas palavras, mas no gesto, no olhar, no ritual silencioso do cotidiano. Um jogo de linguagem pode ser o jeito que uma mãe embala um filho, ou o modo como alguém encosta a mão numa árvore e sente algo sem saber dizer o quê.

Uma citação marcante de Wittgenstein que expressa bem essa visão mais ampla e viva da linguagem, presente nas Investigações Filosóficas, é:

“Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem.”
(Tractatus Logico-Philosophicus)

Mais tarde, nas Investigações Filosóficas, Wittgenstein muda de rota e passa a ver a linguagem como algo vivo, ligado aos jogos da vida, aos contextos, aos usos múltiplos. Ele escreve:

“Falar uma linguagem é participar de uma forma de vida.”
Isso redefine de forma profunda o que entendemos por comunicação. A linguagem deixa de ser apenas um código racional para transmitir informações e passa a ser uma prática encarnada, vivida, compartilhada no cotidiano. Comunicação não é só o que dizemos, mas o que fazemos com o que dizemos — e até com o que não dizemos.

Quando alguém consola em silêncio, quando um cão abana o rabo, quando duas pessoas se olham e entendem algo sem trocar palavras — tudo isso são jogos de linguagem, no sentido amplo que Wittgenstein propõe. Não existe uma linguagem única; existem muitas, tantas quantas forem as formas de vida possíveis. O gesto, o som, o ritmo, o afeto, o cheiro, o tom — tudo comunica.

Essa visão desestabiliza a ideia de que só é válido o que é lógico, explícito, verbalizado. Ela convida a reconhecer a inteligência que opera nas entrelinhas, nas vibrações sutis, nos modos de estar no mundo. O próprio fato de uma criança falar com uma árvore, como na cena inicial, deixa de ser visto como delírio ou imaginação infantil e passa a ser um outro tipo de comunicação — uma participação em uma forma de vida diferente da nossa, mas nem por isso inferior.

Se aceitamos essa pluralidade da linguagem, então também ampliamos a noção de inteligência: deixamos de restringi-la à lógica formal e passamos a vê-la nos saberes do corpo, nos rituais cotidianos, nos conhecimentos ancestrais, nas emoções que movem decisões sem que saibamos explicar como ou por quê.

E, nesse sentido, conectar-se com a inteligência que está em todos os lugares é também reconhecer que estamos sempre nos comunicando com o mundo — mesmo quando calamos. A folha que cai e nos distrai, o cheiro do café que nos lembra alguém, o toque de uma mão que não diz, mas cura — tudo isso são falas, mensagens, presenças.

Wittgenstein, ao tirar a linguagem de um trono lógico e trazê-la para o chão da vida, nos convida a escutar de um outro jeito. E talvez, ao escutar melhor o mundo, descubramos que ele sempre nos respondeu — só que com outro vocabulário.

Já a física quântica sugere que partículas se entrelaçam a distâncias imensas, como se houvesse um tipo de consciência coordenando o todo. Algumas tradições indígenas falam com as montanhas, escutam os rios, pedem licença às pedras. Não por misticismo puro, mas por reconhecer que há ali uma presença, uma sabedoria que não se expressa como a nossa, mas nem por isso é menor.

A dificuldade está em aceitar que essa inteligência não tem um rosto, nem uma assinatura. Ela não se impõe; ela se insinua. Está na coincidência que parecia acaso, mas era recado. Está na pausa antes de tomar uma decisão, quando algo em você diz “espera mais um pouco”. Está no modo como um animal te olha e parece saber exatamente quem você é, sem que você diga nada.

Talvez o maior desafio não seja encontrar essa inteligência, mas desaprender o ruído que nos impede de reconhecê-la. A pressa, o julgamento imediato, o excesso de racionalização — tudo isso nos desconecta. O retorno à escuta profunda, ao olhar desarmado, ao silêncio fecundo, nos aproxima. Não é preciso fazer muito. Às vezes, basta andar devagar, olhar para o céu como quem pergunta e aguarda, ou conversar com uma árvore sem achar que é loucura.

Wittgenstein diria que certos sentidos não cabem na linguagem, mas ainda assim nos atravessam. Talvez a inteligência que está em todos os lugares seja uma dessas experiências inomináveis, que só se entende quando se vive. O que está fora das palavras, muitas vezes, é exatamente o que dá sentido à vida. Ele nos faz um convite à criatividade comunicacional. 

Talvez seja necessário criar pontes, gestos, rituais, novas formas simbólicas. Wittgenstein, nesse ponto, nos convida menos a uma teoria e mais a uma prática ética da atenção ao outro. Wittgenstein parece sugerir que o entendimento é possível quando há sobreposição suficiente entre formas de vida. Ou seja, comunicação existe, mas não como tradução perfeita — e sim como aproximação sensível, como quando aprendemos um novo idioma “por imersão”.


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