Outro dia, enquanto esperava o pão sair do forno na padaria, percebi que ninguém parecia realmente ali. Uma senhora mexia no celular sem piscar, um rapaz olhava para o chão como quem fugia do próprio corpo, e até a atendente repetia “bom dia” no automático, como uma gravação antiga. A fila andava, as pessoas se mexiam, o pão cheirava bem, mas havia um vazio no ar — uma espécie de ausência presente. E aí me veio essa frase: existir, não viver.
Parece
exagero? Talvez. Mas quantos de nós estamos de fato vivendo e não apenas
marcando ponto no planeta?
O
Existir Automático
Existir
é, no fundo, uma função biológica. Respirar, comer, andar, trabalhar — tudo
isso pode acontecer sem que haja uma verdadeira entrega ao instante. Somos
excelentes operadores da nossa rotina: acordamos, pegamos condução, respondemos
mensagens, entregamos relatórios, rimos por educação e terminamos o dia com a
sensação de que não acontecemos em nenhum momento.
Como
diria o filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard, muitos vivem “na estética”, ou
seja, buscam distrações, prazeres e afazeres para não encarar a angústia de uma
vida sem sentido profundo. Essa forma de existência anestesiada é o oposto de
uma vida autêntica — e ela é tão comum que já parece normal.
Viver
é Incômodo
Ao
contrário do existir, viver exige presença. E presença, meus amigos, dói. É
olhar para dentro, sentir o mundo, fazer escolhas conscientes, perder tempo com
o que importa, mesmo que isso não dê lucro nem prestígio. Viver é parar no meio
da rua para ver o pôr do sol mesmo que te chamem de bobo. É perguntar “como
você está?” e realmente esperar a resposta.
A
filósofa brasileira Viviane Mosé diz que “viver é um ato poético” — e poesia,
como sabemos, não se resume a técnica, mas a sensibilidade. Quem vive de
verdade está disposto a não saber tudo, a se vulnerabilizar, a rir alto e a
chorar feio, a perder tempo com gente, bicho, planta e memória. E isso,
infelizmente, parece um luxo em tempos de produtividade tóxica.
A
Sobrevivência Como Estilo de Vida
Existe
um modo de vida que se vende como solução, mas que é apenas sobrevivência
disfarçada. É o “modo avião da alma”, onde nada entra e nada sai. Uma espécie
de hibernação em vida, onde o medo de sofrer também impede o prazer, onde o
medo de falhar impede o risco, e o medo de sentir impede... tudo.
E
então nos tornamos seres que não vivem, mas ocupam lugar. Ocupamos cadeiras,
empregos, apartamentos e perfis nas redes sociais. Produzimos, consumimos,
acumulamos, mas não habitamos a própria experiência.
A
Vida Está Fora da Agenda
Talvez
viver não caiba mesmo na agenda. Talvez viver seja aquela conversa inesperada
no ponto de ônibus, o café que esfria porque a conversa esquenta, o silêncio
que não incomoda. Talvez viver seja esse instante em que você para de correr e,
pela primeira vez no dia, sente que está aqui.
Viver
é interromper o existir automático.
Nietzsche
já alertava para o perigo de uma vida que não se transforma em arte. Uma vida
sem criação, sem autoria, sem cor, é apenas respiração em série. E mesmo isso,
uma hora, cessa. Porque existir é finito. Já viver — se for intenso o bastante
— pode ecoar mesmo depois do fim.
Então,
se um dia te perguntarem o que você fez da vida, tente não responder com a
planilha. Fale de uma tarde boa, de um abraço sincero, de uma decisão difícil
que te fez sentir vivo. Porque, no fim das contas, a diferença entre existir e
viver talvez esteja em quantas vezes você realmente esteve presente — inclusive
no cheiro do pão saindo do forno.
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